Diante da onda de atos antirracistas nos Estados Unidos, ativistas e especialistas no Brasil ressaltam: o mito da democracia racial e a naturalização da violência são obstáculos à luta, mas o aumento no número de protestos é fundamental para promover transformações
As palavras ditas por George Floyd antes de morrer, que ecoaram em protestos antirracistas por todo o mundo, são repetidas diariamente por muitos brasileiros mortos pela polícia sem ganhar a mesma repercussão. Pelo contrário, são pedidos de socorro sistematicamente silenciados por uma sociedade pautada pelo racismo estrutural – conjunto de práticas institucionais, históricas e culturais estabelecidas em uma sociedade construída com base na discriminação que privilegia algumas raças em detrimento de outras. No Brasil e em outros países, essa distinção protege brancos, desfavorecendo negros.
O segurança norte-americano negro, de 46 anos, foi morto após ser asfixiado por 7 minutos e 46 segundos por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio deste ano. A imagem, registrada pela jovem Darnella Frazier e compartilhada nas redes sociais, ganhou visibilidade no país em que Floyd morreu e em todo o mundo, provocando uma onda de manifestações contra a violência policial.
No Brasil, também no mês de maio, uma mulher negra de 51 anos, que preferiu não se identificar, foi arrastada e pisada por policiais militares durante uma abordagem no bairro de Parelheiros, na zona sul de São Paulo. No chão, dizia insistentemente: “Eu não consigo respirar”. Hoje, de muletas e cadeira de rodas, ela relata o trauma ao perceber um carro de polícia. “Quando vejo uma viatura, sinto que serei agredida de novo”, diz. Em julho, um entregador de aplicativo enfrentou situação semelhante em outra abordagem truculenta. Em Pinheiros, na zona oeste paulistana, um vídeo feito por pessoas que passavam pelo local registrava as mesmas palavras: “Socorro, eu não consigo respirar.”
Outras centenas de crianças e jovens negros brasileiros morrem por balas perdidas, sem conseguir proferir uma palavra sequer, como Ágatha Félix, de 8 anos, baleada e morta dentro de uma Kombi, quando voltava de passeio com a mãe, em setembro do ano passado, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro; ou o menino João Pedro Mattos Pinto, assassinado em maio deste ano em meio a uma operação policial no bairro de São Gonçalo, enquanto brincava na casa de um amigo. Na zona sul de São Paulo, Guilherme da Silva Guedes, de 15 anos, teve o sonho de ser piloto de avião interrompido. Ele voltava da casa da avó, em junho, quando foi torturado e morto por policiais militares. A morte trágica de Guilherme provocou protestos no bairro da Vila Clara, com fechamento de ruas da região, queima de ônibus e destruição de viaturas da polícia. Familiares e amigos utilizaram as redes sociais para denunciar policiais militares que teriam revidado, atirando bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo em algumas casas. Vídeos de moradores mostram cenas de agressão de policiais a pessoas andando pelas ruas.
No entanto, a dúvida que permanece diante da repercussão dos protestos norte-americanos é: por que manifestações contrárias ao racismo e à violência policial não têm a mesma visibilidade nos dois países?
De acordo com a advogada Sheila de Carvalho, ativista da Coalizão Negra por Direitos, a comparação entre as reivindicações nos dois países é injusta, uma vez que Estados Unidos e Brasil, apesar de terem como característica o racismo estrutural, passaram por processos históricos distintos. “Existe uma tendência de se colocar tudo dentro da mesma caixa, mas são mobilizações muito plurais”, afirma. “A luta do movimento negro de lá reverbera aqui porque existe um olhar global acerca do problema. Assim, cria-se uma abertura para discutir vivências similares, mas é necessário termos um olhar decolonial [olhar que rompe com a lógica colonialista].”
Segundo o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os protestos nos Estados Unidos foram centrais para o avanço do debate sobre a brutalidade policial. De acordo com ele, um elemento importante que emergiu das manifestações antirracismo é a demanda pelo corte de recursos da polícia, com destinação dessas verbas para outros serviços que poderiam reduzir a criminalidade, como educação, moradia, infraestrutura e programas de juventude. “Eles reivindicam a delimitação da atuação das polícias e que os problemas relativos a esses segmentos deixem de ser resolvidos exclusivamente pelo uso da força.”
No Brasil, um dos motivos que ajuda a explicar a falta de visibilidade dessas manifestações é a naturalização da violência e a repressão orquestrada por governos. “No País, a violência é a linguagem privilegiada de manutenção da estrutura social hierarquizada desde a colonização”, afirma Pacheco. “As violências contra negros, pobres, indígenas, mulheres, população LGBTI+ são historicamente naturalizadas – e ‘justificativas’ como preguiça, transgressão, atitude suspeita, sempre facilmente aceitas porque os direitos não são fundamentais, mas mercadorias morais. É preciso negociá-los em cada esquina”, ressalta o pesquisador.
Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho deste ano, mostrou que a letalidade policial em São Paulo cresceu 31% entre janeiro e abril, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Foram 291 mortes provocadas por agentes de segurança pública no ano passado, em comparação com 381 neste ano. Para o pesquisador da instituição, o que se observou durante a pandemia é que houve redução de crimes patrimoniais, respondidos com mais letalidade policial.
Os dados, segundo ele, demonstram que a polícia não mata em confronto, como é amplamente veiculado. “Existe uma subcultura de alta letalidade das polícias no Estado de São Paulo, que é incentivada e cresce descontroladamente”, explica. “Não se trata de casos isolados, é um padrão evidente que se repete há décadas: são jovens, negros, pobres, majoritariamente desarmados que morrem com fortes indícios de uso excessivo da força. Essa é a escolha política reiterada pelo Estado e refeita pelos governantes.”
Outro aspecto importante a ser observado: a segurança pública é sempre um tema decisivo nas eleições presidenciais e estaduais, que mobiliza milhares de cidadãos de todos os lugares. Em São Paulo, há décadas o bordão “Rota na rua” já esquentava os debates entre paulistas. Em 2018, o então candidato João Doria afirmou que a polícia atiraria para matar. “Esse rendimento eleitoral da violência policial, que transforma a morte de jovens negros e periféricos em votos, é um dos principais obstáculos às transformações de que a segurança precisa para se tornar pública. As manifestações contra a violência policial são essenciais para mudar esse quadro”, afirma Pacheco.
Em comum, segundo o pesquisador, os dois países têm o fato de utilizar, de forma arbitrária, a força policial como política de resolução de conflitos. “A criminalização da pobreza e da negritude, bem como de seus territórios, é gravíssima”, reforça o pesquisador. No entanto, Pacheco afirma que em território estadunidense existe mais regulação do poder da polícia. “No Brasil, os policiais não têm limites, nem controles. A polícia pode mais do que qualquer cidadania, mais do que qualquer direito civil.”