Violência descontrolada

04 de abril de 2024

Os números da insegurança pública saltam nas metrópoles brasileiras, mudando as rotinas das pessoas, demandando ações do governo e impactando setores produtivos inteiros. Em São Paulo, roubos crescem no centro da cidade enquanto, no Estado, crimes contra mulheres disparam.

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Em novembro do ano passado, a psicóloga Eliane Oliveira* levou o filho, Antônio, de 6 anos, e a sobrinha, Victória, de 3, para ver as luzes de Natal no Parque Villa-Lobos, na zona oeste de São Paulo. No fim do passeio, ao anoitecer, os três seguiram  para o estacionamento, em uma ala anexa ao sul do parque. Já perto do carro, dois outros veículos surgiram, e os homens que estavam nos automóveis exigiram que a família entrasse no banco de trás. “Demorei para entender que era um assalto”, conta Eliane, ainda confundindo as tipologias dos crimes: começava, ali, um sequestro de quase dois dias, rendidos pelo grupo, primeiro, no próprio carro e, depois, em um cativeiro na periferia da zona sul na cidade.

Entre o choro das crianças e o medo da morte, ela conseguiu liberar cerca de R$ 50 mil para os criminosos por meio de transações via PIX pelo celular e em resgates de aplicações. “As crianças ainda estão em estado de choque. Deixaram de ir à escola e temem sair de casa”, conta ela, também traumatizada, antes de emendar. “Nós estamos terminando de arrumar as coisas para ir embora do Brasil.” 

Essa não é  alternativa possível para o vendedor Milton Louveira, de 40, embora seja o seu desejo. “Se eu tivesse condições, já estava no avião”, admite. Em duas semanas, ele foi assaltado três vezes em diferentes locais da cidade de São Paulo. A primeira ocorrência foi em uma rua paralela à Avenida Paulista.  Depois, no bairro de Pinheiros e, em seguida, na saída de uma boate na zona oeste.

Em duas das ocasiões, Milton chegou a ficar na mira da arma dos assaltantes. Em uma delas, os criminosos conseguiram desbloquear o seu celular — mesmo sem que ele permitisse o acesso — e extrair perto de R$ 10 mil em conta corrente por meio do aplicativo bancário. “Estou brigando na Justiça para reaver o dinheiro, mas o banco se defende dizendo que a transação foi feita com senha.”

Recentemente, uma decisão bastante criticada da Justiça de Santa Catarina definiu que, em casos de saques ou transferências feitas com uso de senha, as instituições bancárias só devem restituir valores que excederem os limites diários estipulados previamente. A ação julgava o caso de uma aposentada que teve cerca de R$ 20 mil roubados da conta corrente por um fraudador que conseguiu acesso às suas informações bancárias.  

Histórias como essas viraram rotina em conversas informais, na imprensa, em  mesas de discussões e na agenda política. Em todas há consenso de que, nos últimos anos, ficou mais perigoso andar nas grandes metrópoles do País, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, e que as ocorrências se tornaram mais violentas.

Em São Paulo, dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado mostraram, por exemplo, que, entre janeiro e setembro do ano passado, foram registradas, aproximadamente, 16,5 mil ocorrências de roubo apenas no centro da capital — o maior número desde que a série histórica começou, em 2001. É uma média de 45 casos por dia somente na região, considerando que, segundo especialistas, apenas metade das vítimas apresenta notícia-crime à polícia. 

Na cidade inteira, porém, os números caíram: no relatório sobre o ano passado, apresentado em fevereiro pela pasta, a taxa de roubos caiu 6,7% em comparação a 2022. A de homicídios dolosos teve queda de 14,1%, com 450 casos. No Estado, os roubos diminuíram 6,2%, mas os furtos aumentaram (2,4%). Dados destes últimos apontam situação tão alarmante quanto: o volume de ocorrências subiu 7% em 2023, na comparação ao ano anterior, na capital paulista, segundo a SSP. “[A segurança] é hoje o que mais me preocupa”, admitiu, em janeiro, o governador paulista, Tarcísio de Freitas.

Segundo observadores, o declínio da área central de São Paulo se acentuou nos últimos anos por fatores como a expansão da área da cracolândia, perto da Estação da Luz, fruto do  fracasso de medidas do Poder Público para conter o fluxo de usuários — que acabou por espalhá-los. 

Um relatório da consultoria B4Risk mostra que, no primeiro semestre de 2023, a maior parte dos casos de furto e roubo de celulares aconteceu, de fato, no centro de São Paulo, em bairros como República (4,6% de todas as ocorrências), Consolação (3,8%) e Bela Vista (3,2%).  Foi o que aconteceu com o estudante Hugo Vieira, de 23 anos, vítima  de dois homens que o abordaram quando saía da casa da namorada, perto do Minhocão, no centro. “Foi rápido, porque andava preocupado com a onda de violência e, quando vi que seria assaltado, já tirei o celular e entreguei a eles. Não durou nem 20 segundos”, comenta. “Tem circulado um manual informal do que fazer nessas situações, e uma das regras básicas é entregar tudo e não reagir de forma alguma”, continua.

Um estudo do Insper, realizado entre o fim de 2022 e o início do ano passado, dá uma dimensão ainda maior do problema: quase metade (47%) dos paulistanos diz que sofreu alguma ação criminosa recentemente. Destes, 8% foram assaltados. Diante de fatos e números, espera-se que a pauta da segurança pública dê o tom da campanha eleitoral deste ano na cidade, fenômeno já captado por uma pesquisa do Datafolha. Em setembro, o instituto perguntou aos paulistanos quais eram as maiores preocupações: a violência foi apontada por 22% deles, a maior entre todas as outras, superando a saúde pública, que figurava historicamente em primeiro lugar em estudos anteriores. De 2020 para cá, o número de moradores preocupados com a segurança pública saltou 10 pontos porcentuais na cidade.

Para 18% dos entrevistados pela pesquisa, a segurança deve ser a agenda principal da prefeitura, atrás apenas da gestão dos dispositivos de saúde (25%). Os números do analista criminal Guaracy Mingardi, que pertence ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugerem que, mais do que o crescimento dos registros de crimes em São Paulo, o que preocupa é o ritmo da curva de alta. 

Até antes da pandemia da covid-19, os dados já eram altos, mas, depois que a crise sanitária passou (a partir de 2021), voltaram a subir e de forma acelerada. Há várias explicações, segundo Mingardi. A primeira delas está na lógica econômica do crime. “O foco hoje é o smartphone, que tem um mercado ilegal enorme”, destaca. “Mais do que isso, estamos falando de criminosos profissionais, que conseguem correr e se esconder, conhecem a área onde atuam, têm contatos etc. Não são ‘noias’”, continua, referindo-se ao termo pejorativo utilizado em São Paulo para se referir aos usuários de drogas que, historicamente, assaltam pedestres no centro da capital.

“O ‘noia’ rouba às vezes, mas está em uma situação mais vulnerável: é morador de rua, não sabe muito bem o que fazer depois. O criminoso profissional se divide em gangues, especializa-se, ataca em bando e sabe para qual receptador vender o produto roubado após o crime. E é isso que está acontecendo em São Paulo”, completa.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo fórum no ano passado com base em dados de 2022, contabiliza 999,2 mil registros de roubos e furtos de celulares no Brasil no período — o que significa que, em média, cerca de 2,7 mil aparelhos são subtraídos todos os dias no País. Mas o dilema vai além disso.

Mingardi, que escreveu vários livros sobre a burocracia da Polícia Civil e atuou, ele mesmo, dentro da instituição, entende que o fato mais preocupante da crise atual está no próprio sucateamento, há pelo menos duas décadas. “Crime profissional se combate com investigação, porque, se existe um mercado ilegal, então existe um ladrão. Para desmantelar esse mercado e diminuir a margem de atuação do ladrão, é preciso investigar, no sentido de produzir provas, e atuar com inteligência, no sentido de saber o funcionamento do sistema. Mas a Polícia Civil foi jogada no lixo”, lamenta.

É a mesma impressão de Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz. “É preciso mais investimentos do governo na investigação para que os crimes sejam elucidados e seus autores levados à Justiça. Contudo, temos visto o contrário: um foco cada vez maior da gestão Tarcísio em policiamento ostensivo”, aponta. Os estudos do instituto mostram um cenário um pouco diferente no âmbito do Estado paulista: o volume de roubos caiu 4% em 2023, por exemplo, embora os registros de furtos tenham subido timidamente.

Ao contrário da tabulação oficial e da maioria dos observadores do fenômeno, o Sou da Paz analisa o cenário a partir do Índice de Exposição aos Crimes Violentos (IECV), dividido em três indicadores: crimes letais, como homicídios, crimes contra a dignidade sexual (estupro) e crimes contra o patrimônio, em que estão englobados os roubos e furtos. Dentre essas categorias, a que mais aumentou em 2022 foi a de crimes contra a dignidade sexual, com o índice de medição passando de 14,7 para 16. O de crimes contra o patrimônio foi de 5,2, em 2021, para 5,76, no periodo. Segundo Rocha, o problema tem sido tratado de forma superficial pelo Poder Público.

“Enquanto feminicídios e estupros têm crescido mês a mês sem a devida prioridade do governo, esta tem sido dada a roubos, sobretudo na capital”, analisa ele. Rocha também acredita que o PIX, que entrou em operação em 2020, deu robustez aos índices de crimes patrimoniais. “A modalidade de pagamento é evidentemente utilizaa por criminosos, tanto em golpes envolvendo aplicativos de relacionamentos e demais sequestros, como em roubos e furtos de celulares”, diz.

Mingardi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tem uma perspectiva diferente. “O PIX é secundário. O ladrão rouba o celular para vender o aparelho no mercado ilegal. É possível que, além dele, haja ainda a possibilidade de raspar a conta bancária da vítima, mas se trata de uma possibilidade.”

A crise da violência não atinge apenas São Paulo. No Rio, os roubos de celulares subiram 15,7% no Estado, entre janeiro e novembro do ano passado, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), embora, no cômputo geral, as ocorrências de roubo caíram 17%.

Ao longo de 2023, algumas cenas no contexto carioca chocaram o País, como um rapaz agredido por um grupo de justiceiros moradores de Copacabana, na zona sul, acusando-o de furtar aparelhos na praia; ou o assassinato de quatro médicos na Barra da Tijuca, em outubro, após serem confundidos com um miliciano local; ou, ainda, o caos urbano que se seguiu à morte de um chefe da milícia da zona oeste da cidade, naquele mesmo mês. Na ocasião, 35 ônibus e um trem foram incendiados pelos criminosos. 

Em Salvador, na Bahia, houve aumento de 30% nos roubos dentro do transporte coletivo, em 2023, segundo a Secretaria de Mobilidade da cidade (Semob). No Carnaval do mesmo ano, porém, os indicadores da violência caíram em relação à festa de 2022. O Atlas da Violência do ano passado, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou um país com menos mortes violentas no intervalo entre 2011 e 2021. A retração foi significativa: 18,3%.

No entanto, se a taxa de homicídios por cada grupo de 100 mil habitantes de 2021 caiu em relação ao ano anterior (-4,8%), subiu na comparação a 2019 (3,2%). Em alguns lugares, ao contrário, a violência aumentou, como é o caso do Amapá, que, atualmente, registra a maior taxa de homicídio do País: 52 por cada 100 mil. Nos dez anos analisados pelo Ipea, essa margem subiu 72% no Estado. 

(*O nome é fictício para preservar a identidade da entrevistada)


A ÍNTEGRA DESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #480 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Vinícius Mendes Paula Seco
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