Inovação contra o desperdício

15 de outubro de 2021

A aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), em 2010, simbolizou o avanço de uma consciência de sustentabilidade nacional. Desde então, porém, antigos desafios persistem, como fim dos lixões, ampliação dos sistemas de saneamento, expansão da coleta seletiva e estabelecimento de condições econômicas para o crescimento da indústria recicladora.

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A gestão de resíduos, no Brasil, é um problema complexo. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS – Lei 12.305, promulgada em 2010), resultado de longo processo de debate, previa que, em 2014, apenas rejeitos fossem encaminhados aos aterros sanitários. É tido como resíduo aquele material extraído do lixo com possibilidade de destinação como reúso, reciclagem, compostagem e aproveitamento energético; o que sobra é o rejeito, subproduto inaproveitável e que deveria ser disposto em aterros. Desde então, cresceu a coleta seletiva no País e se consolidou um modelo de cooperativas de catadores, além da aprovação dos acordos setoriais e do engajamento empresarial aos compromissos da PNRS. Houve, também, uma maior conscientização da população em relação aos resíduos sólidos – chamados de “lixo”, que produzimos diariamente.

Contudo, uma série de percalços forçou a extensão do prazo para 2024. De acordo com a nova lei, as prefeituras têm até 31 de dezembro deste ano para elaborar o seu plano de gestão dos resíduos sólidos e garantir o descarte correto dos rejeitos. Segundo especialistas, apesar disso, a nova lei não faz grandes modificações nas diretrizes anteriormente previstas na PNRS, somente torna os prazos abrangentes para o cumprimento da meta de eliminar os lixões dentro de nossas fronteiras.

O professor Ronan Cleber Contrera, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), apontou que a postergação dos prazos é advinda da dificuldade de adaptação dos municípios. “Isso já está valendo desde 2010, o problema é que a lei não é cumprida. Há uma falta de comprometimento, porque a lei que existe estabelece toda esta ordem de prioridades. Quem está colocando o resíduo em lixão – se não considerarmos esta extensão de tempo que foi dada –, está numa situação irregular desde a criação da lei. O marco não muda nada disso.” A despeito do novo marco, a aplicação da PNRS permanece igual; municípios em situação irregular após o término do prazo de adaptação podem ser autuados.

Regularizar o descarte do lixo se impõe como espinhoso obstáculo. A quantidade de lixo destinados a aterros controlados e lixões no Brasil – que trazem efeitos negativos de longo prazo ao meio ambiente e à sociedade – cresceu 16% entre 2010 e 2019, passando de 25 milhões de toneladas por ano para pouco mais 29 milhões. Os dados são da Associação Brasileiras das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). A mesma política não garantiu um avanço considerável na reciclagem. Soma-se a este “nó” a questão do desperdício. No Brasil, 40% de todo o alimento produzido são jogados fora, alerta a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), braço da ONU para a alimentação.

Uma vez que a geração de resíduos cresce à medida que as economias avançam, novas barreiras surgirão, e soluções inovadoras também. Assistimos a um movimento crescente de empresas que prontamente empregam tecnologias de resíduo zero para alguns produtos. Neste estágio, em que articulações de tomada de consciência refletem na pressão dos investidores e da sociedade, à luz da importância crescente dada pelo mercado financeiro às práticas em Environmental, Social and Corporate Governance (ESG), o setor privado vem adotando políticas de gestão de resíduos e combate ao desperdício mais rapidamente (e, muitas vezes, mais eficazes) do que as políticas públicas.

“Trabalhamos para reduzir o desperdício de alimento em toda a operação. O Atacadão conseguiu diminuir 28% das perdas de mercadorias em lojas, itens que não podem ser comercializados por causa de avarias ou furtos.” Marie Tarrisse, gerente de Sustentabilidade do Carrefour Brasil

REVERTENDO PERDAS EM GANHOS

Inteligente estratégia de combate ao desperdício foi encontrada pelo Grupo Carrefour Brasil no lançamento de sua Terra Vegetal. O produto está alinhado ao programa de Desperdício Zero do grupo e ao Act for Food, movimento global da rede de supermercados que tem o objetivo de tornar a alimentação saudável e sustentável acessível a todos. “Uma das frentes deste compromisso é direcionada especificamente ao combate ao desperdício, com ações voltadas para aproveitamento dos alimentos sem valor comercial, redução do descarte em aterros sanitários e apoio a famílias em situação de vulnerabilidade social”, conta Marie Tarrisse, gerente de Sustentabilidade do Carrefour Brasil. “Globalmente, temos a meta de reduzir em 50% o desperdício de alimentos e chegar ao nível de aterro zero até 2025.”

À venda em suas lojas, a Terra Vegetal, de marca própria, é gerada da compostagem de frutas, verduras, legumes, ovos e sobras da peixaria e da padaria. Oriundos do setor de perecíveis de 48 unidades em São Paulo, ao serem adotados como matéria-prima, os insumos retornam à cadeia de consumo. Isto implica ganhos em todos os aspectos. Além da qualidade da terra, que é enriquecida e resulta em plantas mais viçosas, seu processo de produção representa o combate ao desperdício de alimentos e reforça o conceito de economia circular, praticada pelo grupo em suas operações, para a utilização total dos alimentos.

O plano é que, mensalmente, de 350 a 400 toneladas de resíduos da rede sejam destinadas à compostagem. Comercializada em embalagens de cinco quilos, ela é própria para jardinagem, horta, gramado e cobertura de solo em geral. Desde o seu lançamento, há um ano, as vendas duplicaram – e, só em 2020, foram vendidos 30,74 mil sacos, o que representou mais de 153 toneladas do produto. “Estamos cientes que, para sermos líderes da transição alimentar, precisamos desenvolver medidas sistêmicas de diminuição de impactos ambientais”, sublinha Marie. “É por isso que trabalhamos incansavelmente para reduzir o desperdício de alimento em toda a nossa cadeia de operação. O Atacadão, por exemplo, conseguiu diminuir, desde 2013, 28% das perdas de mercadorias em lojas, assim entendidos os itens que não podem ser comercializados em decorrência de avarias ou furtos.”

No Grupo Boticário, a gestão de resíduos também visa a gerar impacto socioambiental positivo. Até 2030, o reaproveitamento de 150% de todo resíduo sólido e a promoção de iniciativas sociais estão dentre as metas. “O Boticário acredita que os resíduos devem ser repensados em toda cadeia de valor, buscando formas inovadoras de potencializar a economia circular”, afirma Eduardo Fonseca, diretor-executivo de ESG e Assuntos Institucionais do grupo. “A atuação responsável em relação aos recursos naturais é a única forma de buscar crescimento econômico. Não existe sucesso nos negócios se não vier acompanhado de sustentabilidade e responsabilidade social. Deste modo, há mais de 15 anos, temos o Boti Recicla, o maior programa de Logística Reversa (LR) do Brasil, com pontos de coleta nos mais de 4 mil pontos de venda.”

Em sua operação, a empresa atingiu 96,9% de reciclagem, em 2020, das embalagens colocadas no mercado – e continuará a jornada para alcançar 100%. O portfólio vai priorizar a não geração de resíduos (desmaterialização), iniciativa que já faz parte da estratégia: existem refis para várias linhas, as quais utilizam 69% menos plástico que o frasco tradicional. O plano prevê ampliar a refilagem à perfumaria. A cartela será ainda mais reciclável com o lançamento de maquiagens monomateriais em 2022. Atualmente, 100% das embalagens são produzidas de material reciclado. A empresa estuda materiais alternativos.

Fonseca observa que o público consumidor está cada vez mais consciente e exigente, cobrando das empresas uma postura condizente com o que acreditam, com os seus propósitos. Uma pesquisa da Mintel, de 2019, detectou que 57% dos consumidores avaliam valores éticos das marcas antes de adquirir um produto. “Neste sentido, lançamos a plataforma Beleza Transparente. Pesquisadores e cientistas transmitem todo o nosso conhecimento à sociedade”, enaltece o diretor-executivo. Hoje, o vidro representa 60% do peso das embalagens que o Boticário insere no mercado anualmente. O grupo irá incentivar a coleta, a reutilização e a reciclagem do produto. Ainda, no espectro do amparo social, o programa Empreendedoras da Beleza, lançado no ano passado, até agora promoveu capacitação e auxílio financeiro para mais de 11 mil mulheres (cis e trans), autônomas na área da beleza, em situação de vulnerabilidade.

Focada em melhorias para o lar, a Leroy Merlin não deixou de pensar um modo para solucionar a questão dos resíduos têxteis – no caso, provenientes dos uniformes sem condições de uso de seus colaboradores. Em 2021, 3 mil cobertores populares já foram produzidos com base no material. O projeto Postera, lançado em 2017, garante a reinserção da matéria-prima no processo de descaracterização. Andressa Borba, diretora de Desenvolvimento Responsável da Leroy Merlin, conta que, desde a implantação, mais de 28 toneladas de resíduos assumiram nova finalidade. “Este projeto é muito importante para nós e, por isso, queríamos encontrar um parceiro que pudesse oferecer a destinação correta para tecidos e EPIs, bem como tivesse um propósito social. A Retalhar foi a parceira ideal.”

“Há oito anos”, introduz Jonas Lessa, um dos donos, “detectamos a gravidade dos desperdícios da indústria têxtil, inclusive nos resíduos pós-consumo, nos quais nos especializamos. Há um risco latente relacionado à segurança e à reputação das marcas, o que as levam a adotar alternativas à vida útil de um material cuja produção demandou diversos recursos e ainda gera mais poluição”. O tecido é triturado e desfibrado; as fibras passam por uma blendagem e, então, são agulhadas para a fabricação dos cobertores. “O mesmo tecido pode, antes do desfibramento, ser transformado em novos produtos pela técnica do upcycling e até mesmo em um novo tecido para a produção de uniformes”, acrescenta Lessa.

A Leroy Merlin implementou também o projeto OrgâniCO2, focado em reduzir a pegada de carbono relacionada ao transporte e ao aterramento de resíduos orgânicos, mediante a criação de centrais de compostagem que possibilitam o tratamento desses resíduos no próprio local. Todo o composto é destinado a hortas orgânicas na mesma unidade de negócio ou na comunidade do entorno. Nas hortas, a colheita é levada a uma feira gratuita, disponível para colaboradores e parceiros de negócio. Em um ano, são mais de 60 toneladas que deixam de ir para o aterro. “Nossos consumidores querem se alinhar a empresas que estejam preocupadas com valores ESG. Estamos em 12 Estados brasileiros e é nosso papel prover o melhor e contribuir para o nosso entorno”, afirma Andressa Borba.

“A atuação responsável em relação aos recursos naturais é a única forma de buscar crescimento econômico. Não existe sucesso nos negócios se não vier acompanhado de sustentabilidade e responsabilidade social.” Eduardo Fonseca, diretor-executivo de ESG e Assuntos Institucionais do Grupo Boticário

RESÍDUO ZERO

Marcelo Montaño, coordenador do Núcleo de Estudos de Política Ambiental da Escola de Engenharia de São Carlos/USP e vice-presidente administrativo da Associação Brasileira de Avaliação de Impacto (Abai), traz ao debate que “as principais mudanças [na PNRS] estão associadas aos estímulos para a promoção da circularidade da economia, com a adoção da visão de ciclo de vida a produtos e serviços geradores de resíduos perigosos.”

Ele comemora o fato de que alguns setores da indústria vêm estruturando ações e estratégias, em conjunto com órgãos governamentais, para a implantação da LR. Entretanto, com ressalvas: “Os dados apontam para um processo em expansão”, observa Montaño, “mas ainda em via de ser consolidado, principalmente em setores com maior dispersão territorial – pilhas e baterias, lâmpadas fluorescentes e medicamentos, por exemplo”. O especialista diz que, da mesma forma, verifica-se um certo volume de investimentos em pesquisa para o desenvolvimento tecnológico de produtos com menos impacto ambiental e periculosidade, “mas ainda longe de atingir um patamar significativo em relação à dimensão do País”.

Com a tecnologia de reaproveitamento ou mesmo processos não geradores de resíduos disponíveis, atesta Montaño, já é possível a implementação de uma cadeia 100% sustentável, de resíduo zero. Em contrapartida, segundo ele, ainda se verificam dificuldades de caráter econômico e, principalmente, de governança, para que isso ocorra. “Temos alguns exemplos pontuais de integração em determinadas cadeias produtivas e setores, chamando a atenção para as iniciativas de implementação de ecoparques industriais concebidos dentro de uma matriz teórica que compartilhe noções da ecologia industrial, simbiose industrial e economia circular”, ilustra.

Na avaliação do coordenador, a gestão ambiental deve ser integrada às instâncias decisórias estratégicas das empresas. “Planejamentos baseados nos aspectos ambientais, sociais e de governança são uma possibilidade às empresas e aos investidores, que passam a depender cada vez mais de um contexto amparado por instrumentos legais consistentes e processos de tomada de decisão transparentes às discussões ambientais relevantes, em suas diversas escalas.”

Eduardo Ribeiro Paula Seco
Eduardo Ribeiro Paula Seco