No passado recente, um jargão foi se tornando cada vez mais comum no ambiente de negócios – até se tornar uma das poucas unanimidades em debates entre mercado, governo e sociedade civil: o “potencial sustentável brasileiro”. A expressão tenta traduzir, sem perder a provisoriedade, uma percepção de que o País pode se reinserir no jogo internacional de trocas para além da posição de fornecedor de commodities, mas como fonte de soluções inequívocas aos dilemas ambientais globais.
A expectativa se entrelaça a uma certeza antiga: o Brasil tem sobre suas riquezas naturais um horizonte no qual estas, para além das lógicas internas, podem ajudar, de fato, a mudar os rumos do planeta. É este protagonismo, em uma agenda relevante para o mundo, que se espera dentro e fora do território nacional.
Não à toa, um dos momentos mais aguardados da última COP27, no Egito, era a chegada do presidente Lula (à época, ainda não empossado). José Goldemberg, presidente do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e que foi ministro do Meio Ambiente no começo dos anos de 1990, escreveu, na ocasião, que a viagem tinha o propósito de tirar o País da “condição de pária à que foi relegado”.
Os resultados, segundo Goldemberg, foram instantâneos: na própria reunião, governos europeus anunciaram o aumento ou a retomada de programas de proteção da Floresta Amazônica, que voltou à cena global no começo de 2023 diante da grave crise humanitária dos ianomâmis, consequência direta do garimpo ilegal no território indígena. Dali em diante, não apenas os governos, mas os mercados financeiros também voltaram os olhos ao Brasil.
O dilema, porém, persiste: para transformar este potencial em realidade, analistas do setor afirmam que o País deve apresentar projetos sustentáveis sólidos, consolidar narrativas, lidar com as práticas de greenwashing e, além disso, criar um marco regulatório para seus mercados “verdes”, como o de carbono. Ações como estas teriam, na visão deles, um impacto instantâneo na renovação da atratividade brasileira para os investidores globais.
Por enquanto, as perspectivas têm sido maiores do que a concretude: no primeiro semestre de 2022, por exemplo, dos mais de US$ 3,3 trilhões de títulos ligados a projetos verdes emitidos no mundo, apenas 2% saíram da América Latina e do Caribe, segundo dados da Climate Bonds Iniciative (CBI). A região entrou no mercado em 2014, quando uma empresa peruana financiou a construção de duas fazendas de captação de energia eólica no país seguindo este modelo de emissão de dívida. Hoje, Brasil, Chile e México dominam captações desta espécie a nível local.
“A preocupação dos investidores é com as credenciais e as certificações das operações financeiras”, explica a coordenadora do programa de Infraestrutura para a América Latina da CBI, Julia Ambrosano. “No limite, eles buscam narrativas bem consolidadas sobre os projetos, não apenas onde já exista tecnologia verde, mas também onde esteja ocorrendo a transição”, ressalta.
A renovação da matriz elétrica é um ilustrativo de ambos os casos, porque ao mesmo tempo que ainda sustenta fontes “sujas” (termoelétricas), também abre caminho para captações renováveis, como a eólica e a solar. Na visão de Julia, os mercados têm exigido que os projetos ligados a títulos verdes (green bonds) forneçam critérios científicos de mensuração de resultados, o que também funciona como um tipo de credencial.
“As empresas mundiais se baseiam não apenas no que foi alinhado no Acordo de Paris, em 2015, mas em uma série de critérios quantitativos e qualitativos que indicam o que pode e o que não pode receber recursos”, afirma ela. A executiva lembra da reunião entre países sediada na capital francesa que, dentre várias metas, estabeleceu o limite de aumento da temperatura do planeta em 1,5 grau até 2100.
Nos últimos anos, empresas, corretoras e fundos de capital passaram a criar metas e até regimes de investimentos em projetos sustentáveis. Mais recentemente, esta demanda chegou às esferas públicas. Na União Europeia, para se ter uma ideia, foi criado um “selo verde” para caracterizar as práticas e a destinação dos recursos entre os negócios. Desde então, este tipo de credencial se tornou comum entre governos e empresas privadas.
Fatores como estes explicam em parte o motivo pelo qual, dentro do escopo ESG, o mercado brasileiro tem atraído mais investimentos em projetos ambientais – ou seja, no “E” – do que sociais ou de governança. Além de fornecer mais projetos do tipo, como não poderia deixar de ser, são eles que lideram, hoje, a emissão de títulos. “Como o processo tem melhores condições de apresentar métricas científicas, fica mais fácil captar recursos por meio da emissão de títulos. O investidor conta muito com isso”, explica Julia.
Dados da entidade mostram que, na América Latina e no Caribe, 47% dos green bonds emitidos em 2022 saíram do setor de energia, seguido pelos transportes (25%). No Brasil, até o terceiro semestre do ano passado, já haviam sido emitidos US$ 27,3 bilhões, sendo a maioria (52%) de projetos da matriz energética e 23% envolvendo o uso da terra. Do total de US$ 139,4 bilhões de green bonds emitidos na região em 2022, a maior parte saiu do Chile (US$ 41,5 bilhões), hoje o maior mercado regional.
Fonte: Climate Bonds Initiative (CBI)
André Sacconato, assessor econômico da FecomercioSP, entende que a abertura da economia “verde” nacional, a partir do governo recém-empossado, significará o destrave de um fluxo de capitais em direção ao País, que permaneceu inacessível nos últimos anos. “Há muitos recursos no mundo que, por legislação, precisam ser aplicados em projetos com selos verdes. Isso não estava acontecendo. Isto é, temos um potencial sustentável enorme, mas que não estava sendo aproveitado pela falta destas certificações”, explica.
Os selos são emitidos por entidades como a própria Climate Bonds Initiative, que observam os regimes de trocas e validam as transações. Sacconato acrescenta que as condições brasileiras já estão dadas, de antemão, pelas próprias características de sua economia no contexto global. “Em relação aos nossos principais concorrentes regionais e globais, não há dúvidas de que a nossa situação é melhor. Se o novo governo se preocupar com os selos verdes, como parece que está fazendo, será um movimento que, por si só, já vai atrair muito dinheiro para o Brasil”, completa.
De fato, o País segue uma rota de crescimento: em 2020, foram emitidos cerca de US$ 5,7 bilhões de títulos verdes. Um ano depois, foram registrados US$ 15,8 bilhões neste tipo de operação – um crescimento significativo de 177%. A perspectiva do mundo é que o Brasil caminhe, em paralelo, no sentido de criar marcos regulatórios.
Em relatório da consultoria norte-americana MSCI, publicado há algumas semanas, há a previsão de que, em 2023, uma das principais mudanças neste jogo de trocas seja uma regulação mais estrita dos investimentos e dos tipos de fundos sustentáveis, notadamente de ESG, que as empresas vão articular em torno dos seus negócios. Isso já está acontecendo nos Estados Unidos e no Canadá, onde devem apresentar relatórios em intervalos regulares sobre as aplicações neste tipo de fundo. “Para os investidores, isso pode ajudá-los a tomar melhores decisões, já que estarão baseadas em dados mais precisos”, destaca a publicação.
Há dois anos, o governo baixou uma lei simplificando o processo de emissão de títulos para projetos verdes e, desde então, vem revisando regras e modificando critérios para destravar o mercado. Neste ano, a expectativa é que a equipe econômica do governo Lula volte à carga sobre o tema.
“A regulação é sempre bem recebida, porque ela pode incentivar mais emissões. Nós temos uma meta de atingir US$ 5 trilhões em títulos – e iniciativas deste tipo ajudariam a chegar até ela”, finaliza Julia Ambrosano, da CBI. Até lá, todos esperam que o potencial sustentável brasileiro já tenha se tornado realidade.