Com o isolamento social, 75,8% dos usuários de jogos eletrônicos admitem passar mais horas diante da tela; ao mesmo tempo, cresceu a procura de familiares por auxílio clínico a jovens viciados em dispositivos digitais
Passar horas na frente da tela de smartphones ou tablets se tornou um hábito consolidado na vida de brasileiros e brasileiras de todas as idades. Segundo a 8ª Pesquisa Game Brasil, realizada pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) em parceria com três empresas de tecnologia, 72% da população do País são usuários de jogos eletrônicos, dos quais 75,8% admitem que estão jogando mais do que antes da pandemia.
Os números em si não seriam preocupantes caso não houvesse uma parcela cada vez maior de pessoas que extrapola a fronteira do uso saudável e acaba mergulhando fundo na dependência da tecnologia. Levado ao limite, o comportamento compulsivo tem efeitos devastadores nos âmbitos da saúde e das relações familiares e profissionais. “É assustadora a quantidade de jovens, entre 20 e 30 anos, que acabaram com as suas vidas pela falta de controle no videogame. Desperdiçam as oportunidades em estágios e empregos e não estão em aí”, exclama Cristiano Nabuco, psicólogo do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq). “Tenho pacientes que estudaram em universidades no exterior, foram despedidos de multinacionais e, hoje, passam o dia fechados no quarto jogando.”
O quadro não é diferente em outras cidades, como no Rio de Janeiro, onde, há oito anos, foi criado dentro do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o laboratório Delete-Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, que atende gratuitamente jovens viciados em internet. De 2020 para cá, o número de atendimentos cresceu 20%.
Os casos variam, atingindo todos os gêneros e classes sociais. Há 17 anos atuando no IPq, Nabuco observa que há predominância de adolescentes adictos em jogos online, de jovens mulheres em redes sociais e de adultos em sites de pornografia e no mercado de ações, pela plataforma home broker. “Já tive um paciente, de meia-idade, que tinha cerca de 4 milhões de fotos de mulheres gordas nuas em seu HD externo.”
No IPq, o caso mais extremo acompanhado pelo psicólogo envolveu um adolescente de 17 anos que não saía de casa há dois anos, chegando a ficar 55 horas ininterruptas no quarto, sem sequer ir ao banheiro. “Como os games de hoje não possuem a ferramenta game over, o jovem se sente em estado permanente de desafio, por causa da liberação de dopamina. É como uma sensação de prazer e recompensa.”
Ao contrário do que se pode aleatoriamente concluir, os games não induzem à violência, garantem diversos estudos, mas potencializam eventuais transtornos preexistentes, como baixa autoestima, depressão, fobia social, hiperatividade, déficit de atenção e conflitos familiares. O tratamento dura entre 16 e 18 semanas, com encontros semanais, e emprega técnicas de psicoterapia e, em determinados casos, uso de antidepressivos à base de topiramato, que inibem os efeitos da compulsão. Na psicoterapia, evita-se a retirada brusca do smartphone ou do tablet, mas ferramentas são apresentadas para que o paciente perceba a sua condição e busque formas de substituir o prazer oferecido pelos games. “A tecnologia excessiva entra na vida das pessoas quando as relações humanas não ocupam o seu devido lugar”, diz o psicólogo, em referência à constatação da socióloga norte-americana Sherry Turkle.
A responsabilidade dos pais na imposição de limites é ressaltada por Anna Lucia Spear King, psicóloga e professora carioca, coordenadora do laboratório Delete-Detxo Digital. “Os pais devem determinar tarefas e deixar os jogos online como lazer. Não podem deixar os filhos em casa jogando o dia inteiro. Precisam conhecer os youtubers que os filhos estão seguindo. Adolescentes não têm discernimento para identificar os valores que estão sendo oferecidos para eles.”
Depois de prestar atendimento a cerca de 2 mil pacientes envolvidos com o uso descontrolado de tecnologia digital, Anna Lucia, autora de diversos livros sobre o assunto, estabeleceu uma linha entre os distintos graus de dependência. “Cerca de 80% dos casos são leves e estão relacionados a uma má educação digital, passíveis de correção pela conscientização dos hábitos, principalmente em adultos.” Nesses casos, enquadram-se as pessoas que respondem a e-mails enquanto dirigem, discutem frequentemente com o cônjuge e demonstram problemas de concentração no trabalho. Normalmente, este perfil de dependente busca espontaneamente o tratamento do “detox digital”, muitas vezes após a ocorrência de um problema gerado pelo uso excessivo, como uma demissão no trabalho ou repetência na faculdade.
Anna Lucia Spear King, coordenadora do Laboratório Delete-Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ainda sem efeitos práticos, o governo federal lançou, em 2019, a campanha Desafio Detox Digital, iniciativa que está longe de entusiasmar os especialistas. “Orientei o governo a criar um vídeo por meio de uma pesquisa que apontava a perda de massa cinzenta do cérebro em pessoas que navegavam quatro horas por dia em um mês. Fui hostilizado no Instagram por gigantes multinacionais de games”, lamenta Nabuco. Já Anna Lucia relata que foi convidada a participar de um evento sobre uso consciente, em Brasília, no qual estavam previstas as presenças de autoridades. “Não apareceu ninguém, falei apenas para poucas servidoras federais.” Cética, a psicóloga entende que o atual governo “não está maduro para aprofundar o tema”.
Conhecido pela sua atuação no combate à publicidade abusiva dirigida ao público infantil, o Instituto Alana também está focado nos riscos do ambiente digital. No ano passado, a ONG promoveu, no YouTube, uma série de palestras com o tema “Ser criança no mundo digital”. Os eventos tiveram cerca de 12 mil inscritos, com uma média de 2 mil visitantes para cada, a maioria composta por mães e educadores. “As famílias têm a percepção de que o ambiente digital é mais seguro do que as ruas. Entretanto, as crianças necessitam de interação presencial física, com adultos e outras crianças, para poderem interagir e aprender. Deixar uma criança sozinha em frente a uma tela é o mesmo que abandoná-la em uma avenida movimentada esperando que ela ande pela calçada”, alerta Raquel Franzim, coordenadora de Educação do Instituto Alana. No segundo semestre, a ONG pretende realizar uma nova edição do evento.