Em março de 1979, as dificuldades enfrentadas pelos jovens à procura do primeiro emprego foram assuntos debatidos em Problemas Brasileiros. Quase 45 anos depois, esses desafios parecem ainda mais complexos: dentre a população de 14 a 29 anos, 27% não estudam nem trabalham.
De lá para cá, a escolaridade melhorou, mas as competências requeridas agora seguem na esteira de um novo componente dessa engrenagem — a transformação digital.
Há 80 anos, no dia 1º de maio de 1943, aproximadamente 100 mil pessoas se aglomeravam na Esplanada do Castelo, região central do Rio de Janeiro, onde ficavam localizados os prédios de alguns ministérios no período em que a cidade foi a capital federal.
A multidão era formada por funcionários uniformizados da estatal Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), marco da recém-criada indústria de base nacional, operários de fábricas, empregados do comércio, funcionários públicos, ferroviários, tecelões e diversas outras categorias, escaladas pelos respectivos sindicatos e pela intensa propaganda oficial promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que conclamou o povo a prestigiar as celebrações do Dia do Trabalho.
Tudo foi preparado para uma festiva tarde de sábado carioca, com direito a banda de música da Polícia Militar e guarda de honra presidencial. Alto-falantes foram espalhados por toda a esplanada para o público acompanhar os discursos das autoridades. A presença mais aguardada, porém, era a do presidente Getúlio Vargas, que falaria a partir da tribuna de honra montada em uma das sacadas do edifício do Ministério do Trabalho.
Por volta das 15h, Vargas comunicou à Nação, durante o seu tradicional discurso de 1º de Maio, a assinatura do Decreto-Lei 5.452, que instituía a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o mais importante arcabouço de legislação laboral da História do Brasil. Com 922 artigos, a CLT passou a oferecer aos empregados uma série de proteções legais até então inexistentes, como registro em carteira, aposentadoria por tempo de serviço, salário mínimo, férias remuneradas, jornada fixa e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), entre outros benefícios.
“O trabalhador brasileiro nunca me decepcionou. Diligente, apto a aprender e a executar com enorme facilidade, sabe ser também bom patriota. A essas disposições, o governo responde com uma política trabalhista que não divide, não discrimina, mas, ao contrário, congrega a todos”, discursou o presidente ao público, que respondia a cada trecho agitando bandeirinhas e com salvas de palmas. A criação da nova legislação trabalhista, que após ser regulamentada entrou em vigor a partir de 10 de novembro de 1943, garantiu a Vargas a sustentação do Estado Novo e o seu título mais famoso: “pai dos pobres”.
Oito décadas após ser criada, a CLT, mesmo ao sofrer várias modificações em seus artigos ao longo das décadas, segue como importante mecanismo de regulação. O mercado de trabalho brasileiro, porém, enfrenta novos desafios que não existiam na era Vargas, em especial o advento da tecnologia e seus efeitos nos modos de produção e nas exigências para o preenchimento das vagas. Além disso, há um predomínio da informalidade, o que deixa milhões de brasileiros à margem dos direitos comemorados naquela tarde festiva de 1943.
“Em torno de 40% dos brasileiros trabalham de modo informal, sem proteções trabalhistas e previdenciárias”, atesta o professor José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações de Trabalho (CERT), da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). Segundo ele, em entrevista sobre o tema, na contramão da segurança e da estabilidade econômica prometidas aos trabalhadores por Vargas, o mercado de trabalho brasileiro atual se caracteriza pela baixa qualidade das vagas, pela educação limitada e pela falta de qualificação da mão de obra frente aos avanços da digitalização empresarial.
“Dois terços dos brasileiros que trabalham estão em postos de baixa qualificação, ao passo que sete em cada dez trabalham em empregos de baixo conteúdo tecnológico e remuneração”, destaca Pastore. Mesmo para os bons empregos, explica o professor, há falta de mão de obra qualificada em áreas como Infraestrutura, Pesquisa e Desenvolvimento Industriais, Energia, Meio Ambiente, Tecnologia da Informação (TI) e outras que exigem mais capacitação. Isso não significa, porém, que um diploma seja a garantia de bons empregos e altos salários. “Há cerca de 5 milhões de pessoas com diploma universitário que não conseguem exercer atividades na sua área de formação e que acabam trabalhando em postos que exigem menos qualificação, o que se reflete em salários mais baixos”, diz Pastore.
A crescente digitalização leva a um movimento de substituição de postos de trabalho, principalmente de baixa complexidade, pelo uso de máquinas, atingindo as pessoas que atuam nessas funções e que, conforme explica Pastore, são maioria no País.
O movimento é semelhante ao que ocorreu durante a Revolução Industrial, na Inglaterra, a partir do século 18, quando o trabalho artesanal foi substituído pelas máquinas em setores como tecelagem, aumentando a produtividade das empresas e reduzindo custos. “A diferença é que a revolução digital chega em uma velocidade muito superior à industrial, o que demanda uma responsabilidade social muito grande por todos os setores envolvidos”, explica o cientista político Andriei Gutierrez, presidente do Conselho de Economia Digital e Inovação (CEDI) da FecomercioSP.
A digitalização também apresenta reflexos positivos, como mais oportunidades em áreas de TI, Saúde e Educação. Setores como o criativo, o digital e o de economia verde são apostas e devem ser os responsáveis pela geração de centenas de milhares de vagas nos próximos anos. “A inclusão digital das empresas acarreta novos serviços e oportunidades que absorvem essa mão de obra. É uma oportunidade histórica que temos, pois, hoje em dia, é possível inovar em qualquer lugar do território nacional que disponha de boa conectividade”, ressalta Gutierrez.
Os desafios para promover a inclusão dos trabalhadores nesse mercado de trabalho cada vez mais exigente passam pela preparo dos empregados, em especial os mais jovens, conforme mostra o estudo Futuro do Mundo do Trabalho para as Juventudes Brasileiras, divulgado em março deste ano.
“A economia digital é uma realidade, inclusive transversal às outras. Por isso, é muito importante o investimento em letramento digital dos jovens, com real compreensão das potencialidades da tecnologia e de como aplicá-las de maneira crítica”, explica Lia Glaz, diretora-presidente da Fundação Telefônica Vivo, uma das promotoras do estudo, realizado em parceria com o Itaú Educação e Trabalho (IET), a Fundação Roberto Marinho (FRM) e a Fundação Arymax. “Quanto antes as escolas tiverem capacidade de desenvolver essas habilidades nos estudantes, mais preparados eles chegarão ao mercado, independentemente da área de atuação”, completa Lia.
Na visão de João Alegria, secretário-geral da FRM, é preciso desenvolver, em caráter de urgência, políticas públicas sistêmicas, de complemento educacional e formação profissional, para que essa parte significativa da população consiga se incluir social e produtivamente. O estudo detalhou a relevância de diferentes habilidades para inserção de jovens no mercado de trabalho
As habilidades tecnológicas e socioemocionais são tidas como as mais importantes. Já as habilidades motoras são as que mais concentraram a opção “indiferente”.
A situação pode piorar no futuro, caso não sejam implementados programas de governo eficazes para essa parcela da população, segundo a gerente de Gestão do Conhecimento do IET, Carla Chiamareli. “As ações passam pela expansão qualificada das educações profissional e tecnológica, atreladas a políticas de fomento que envolvam a sociedade e o setor produtivo”, destaca.
Para os próximos anos, também será necessário lidar com o envelhecimento da população brasileira e a redução das taxas demográficas, o que deve provocar impactos ao mercado de trabalho, já que será necessário produzir mais com menos gente disponível. “Será preciso requalificar os profissionais mais velhos. Também deverá haver melhorias da produtividade e da eficiência. Caso contrário, o desenvolvimento do País estará comprometido”, explica o economista Paulo Paiva, professor associado da Fundação Dom Cabral (FDC) e ex-ministro do Trabalho e do Planejamento e Orçamento durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Outra tendência destacada pelos especialistas é a flexibilização das relações de trabalho ocorrida após a Reforma Trabalhista de 2017, que, dentre outras medidas, facilitou a contratação de funcionários temporários e afrouxou regras. Isso levou à busca por alternativas como trabalhos com aplicativos (mobilidade e entregas, principalmente) ou o microempreendedorismo.
“A flexibilização é uma tendência que habita as mentes de profissionais de recursos humanos e trabalhadores, mas estamos longe de ter boas soluções de vínculo e seguridade social para relações laborais mais fluidas”, opina Alegria. Segundo ele, as empresas, como outras instituições tradicionais com as quais estamos acostumados a conviver, estão sendo pressionadas a passar por transformações profundas.
Exemplo dessas mudanças com reflexos nos Recursos Humanos (RH) ocorre no setor bancário. Frente à digitalização das transações financeiras, o transporte físico de cédulas, moedas e cheques sofreu uma queda brusca, obrigando as empresas de transportes de valores a se reposicionarem no mercado. A Brink’s investe em soluções digitais para o varejo e novos serviços a instituições financeiras.
Quando a empresa atuava apenas no segmento de transporte de valores, a maior parte do quadro de funcionários era da área Operacional, incluindo motoristas e vigilantes. Com o investimento em transformação digital, são necessários novos perfis. “É preciso, por exemplo, ter conhecimento em tecnologia, Inteligência Artificial (IA), visão financeira e até mesmo varejo”, explica Marcelo Caio Bartolini D’Arco, CEO da Brink’s Brasil.
Pelo lado dos trabalhadores, há obstáculos como desenvolvimento de novas habilidades, estabelecimento do equilíbrio entre vidas pessoal e profissional em ambientes de alta densidade tecnológica, além de lidar com relações menos firmes com empresas e empregadores. “Em todas as transições, há o choque entre o velho e o novo”, alerta Gutierrez do CEDI, lembrando que, durante a Revolução Industrial, máquinas eram destruídas porque os operários temiam perder os empregos para a automação. “O que faz a diferença é a velocidade para dar as respostas necessárias”, completa.
Oito décadas se passaram desde que a CLT foi promulgada e estabilizou, no Brasil, as relações entre empresas e trabalhadores. Contudo, na opinião de Alegria, da FRM, a globalização exige uma flexibilidade e capacidade de resposta que a legislação trabalhista, mesmo tendo sido revista algumas vezes, já não consegue mais atender.
A reportagem foi publicada na edição comemorativa de 60 anos da PB.