O fenômeno do trabalho pelas plataformas digitais virou uma espécie de definidor do modo de produção dos novos tempos. Contudo, o que se deu início na oferta de serviços que exigem pouca especialização, como os aplicativos de entrega e de motoristas, virou ferramenta de renda também nas mãos de profissionais qualificados. Professores, psicólogos, nutricionistas, médicos, programadores e designers já complementam rendas — ou até obtêm o total dos rendimentos — oferecendo serviços em plataformas online.
Depois de colocar os filhos para dormir, em Indaiatuba, interior de São Paulo, o médico ortopedista Raphael Serra Cruz atende pacientes de todo o Brasil em consultas de telemedicina. “Quando resolvi abrir um horário de atendimento noturno na agenda, nem sabia que haveria tanta demanda”, conta ele, que além do consultório físico, atende pela plataforma Conexa. A sua adesão ao universo do trabalho online se deu por motivos pessoais, quando, em 2022, decidiu se mudar do Rio de Janeiro, onde estudou e mantinha consultório já há vários anos. Consciente de que perderia a fonte de renda, buscou conhecer a proposta dessas plataformas por meio de colegas que já atendiam online. “O site viabilizou minha mudança. No início, dava plantão uma vez por semana num hospital local, enquanto nos outros quatro dias atendia pela plataforma”, lembra-se.
Histórias como a de Raphael são cada vez mais comuns. A crise da covid-19 foi o catalisador de um processo que levou o trabalho para dentro de casa — e, em diversas áreas, a emergência se transformou em tendência. Um relatório do Banco Mundial, de outubro de 2023, estima que o número global de trabalhadores temporários online chega a 435 milhões de pessoas. Além disso, a procura por trabalho via internet aumentou 41% entre 2016 e o primeiro trimestre de 2023.
Jaime Vasconcellos, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), avalia que o fenômeno foi mesmo acelerado na pandemia. “Antes, os trabalhadores mais intelectuais precisavam se dirigir ao escritório. No máximo, resolviam algumas questões por telefone. Mas, com o isolamento social e a necessidade do home office, houve uma rápida digitalização das relações de trabalho”, afirma. Ele lembra que a mudança traz desafios não só para o trabalhador, como também para quem procura o serviço. “É de responsabilidade do contratante avaliar se o prestador, online ou presencial, cumpre todas as suas exigências. No virtual, é necessário aumentar o crivo, buscar o máximo de informações, conhecer trabalhos anteriores, procurar indicações”, recomenda. A questão geracional também influencia no ritmo de virtualização das relações laborais. “O pessoal mais novo nem precisa dessa transição, pois já nasce no digital. Entretanto, as novas formas de trabalho também servem para os mais velhos dispostos a se reinventarem”, conta. Em todos os casos, as plataformas podem oferecer uma série de facilidades, ao disponibilizar agenda e pagamento no processo, por exemplo.
Na caso de Raphael, foi preciso mudar também as próprias crenças para aderir à nova forma de trabalho. “Tive uma formação tradicional e era até um pouco cético, mas minha resolutividade na telemedicina é muito boa. Há situações em que não substitui o presencial, mas o importante é conhecer as limitações e saber quando direcionar o paciente”, diz. Embora já tenha conquistado uma boa clientela local — e reconheça que ganhe mais com as consultas presenciais —, o ortopedista não abre mão dos atendimentos online. “Gosto da liberdade geográfica. Posso sair de férias, reservar um horário no hotel e, por duas horas, atender pacientes”, afirma. Na saúde, a legislação tem peso fundamental: durante a pandemia, houve uma regulação emergencial que permitiu o atendimento online, convertendo-se, posteriormente, em lei.
Esse tipo de arranjo trabalhista é um “caminho sem volta”, acredita Roseli Figaro, professora na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da rede Fairwork Brasil. “As plataformas oferecem facilidades para um conjunto de trabalhadores e clientes. Se fosse ruim, ninguém usaria. Não queremos voltar a 1980”, ressalta, que lembra que a miríade de possibilidades para trabalho via plataformas só aumenta. Além de funções tradicionais, especializadas ou não, Roseli lembra que há quem realize microtarefas que não existiam na década de 1980, como moderação de conteúdo e treinamento de sistemas de Inteligência Artificial (IA). Um dos desafios atuais é conhecer, de fato, o tamanho do mercado e estudar como funciona. “É muito difícil ter um mapa, porque não há regulação, um registro, não temos como saber quem trabalha onde. Para os serviços especializados e profissionais liberais, temos vários tipos de plataforma. Podem ser nacionais e pequenas. E há outras com milhares de trabalhadores”, afirma.
Por isso, a pesquisadora defende que o modelo passe por uma série de regulações e melhorias. “Queremos, sim, ter os serviços, mas também transparência e privacidade de dados — que estes fiquem no Brasil e as ferramentas sejam em português. Os dados retroalimentam os algoritmos, mas 80% dessas informações que circulam no mundo são em inglês”, conta Roseli. Dentre os princípios da Fairwork, destacam-se pagamentos dignos, boas condições de trabalho, contratos claros, gerenciamento dos trabalhadores e alguma forma de representação para esses profissionais.
A falta de uma pessoa para gerenciar o trabalho e resolver conflitos pesou para o professor Bernardo Ballardin, que exerceu a função de corretor de redações em uma plataforma digital. “Algumas pessoas deram notas baixas para as minhas correções e fui automaticamente suspenso, sem nem saber o porquê”, recorda. Não houve quem apontasse as correções com problemas, um espaço para discussão ou até mesmo algum tipo de arbitragem humana no processo. “Quando corrigimos provas numa escola ou cursinho, há sempre um coordenador para refletir sobre as diferentes visões caso algum aluno não concorde com as notas”, explica. Ballarin conta, ainda, que o trabalho era mal remunerado, além de “solitário, repetitivo e cansativo”. Após a experiência, passou a dar aulas particulares em plataformas educacionais. Anos depois, o professor se tornou pesquisador do Center for Artificial Intelligence (C4AI), da USP, e decidiu se dedicar à pesquisa do tema, centrando esforços justamente nos professores que trabalham para plataformas.
No caso específico dos docentes, Ballarin defende que os sistemas passem, urgentemente, a valorizar a formação oficial. “Há muitas pessoas sem diploma que se cadastram e cobram valores baixos, o que torna a competição desleal”, afirma. Os preços baixos ganham destaque na lista exibidas aos potenciais alunos. O pesquisador constatou também que quem se cadastra para oferecer aulas são profissionais procurando alunos particulares, partindo para várias frentes. Essas aulas costumam ser uma fonte extra de renda e raramente representam o salário principal. “Alguns poucos conseguem ter ali uma fonte segura e constante, mas a maioria fracassa e não consegue achar alunos. A quantidade de professores bem-sucedidos gira em torno dos 2%”, conta.
Independentemente da área de atuação, a precariedade costuma ser um ponto que preocupa. Contudo, é preciso pensar dentro da realidade pré-existente. “Muitas vezes, parte-se de uma análise europeia, mas o Brasil já conta com mercado precário. As plataformas absorvem pessoas que estão na precariedade”, ressalta Ballardin. O que o pesquisador pede às empresas é que atuem com transparência: “Não existe contrato de trabalho, mas pode haver um termo de consentimento claro, o qual deve incluir os motivos de uma suspensão, o modo de funcionamento do algoritmo e a quantidade de clientes. Tudo isso é para que o profissional entenda aquele mercado e os direitos ele tem. Caso aconteça problemas como o não pagamento, quem ficará com o prejuízo? A plataforma se responsabiliza pelo quê?”, questiona.
Nada que seja impossível de ser alcançado. Gabriel Garcez, vice-presidente de Saúde Física da Conexa, destaca que a transparência é fundamental para manter uma equipe de profissionais de saúde que atendam com qualidade. “No nosso modelo, o profissional passa por uma análise, recebe treinamento e passa a pertencer a um corpo clínico”, explica. Não se trata de um marketplace de profissionais de saúde, mas de um grupo em que todos têm trabalho mínimo garantido. Para dar conta das flutuações de demanda, a plataforma adota um modelo de transbordo, no qual são oferecidos mais horários de atendimento para quem já esteja na rede antes que novos profissionais sejam chamados. “Enfrentamos um desafio em janeiro de 2022, com a variante ômicron da covid-19. Naquele mês, tivemos seis vezes mais demanda que em dezembro. Dentro do nosso próprio corpo clínico, perguntamos quem estava disposto a ampliar os atendimentos e conseguimos dobrar o número de horas com os mesmos profissionais”, relata Garcez.
Assim como a mão de obra de perfil menos especializado, profissionais qualificados já estão imersos nas plataformas. Agora, é preciso cuidar para que as relações sejam estabelecidas de forma transparente e justa a fim de garantir bons critérios de qualidade para quem trabalha, contrata e consome os serviços prestados.