Qualificar para empregar

25 de abril de 2024

Conseguir uma vaga no cobiçado mercado de tecnologia ou empreender para melhorar a renda mensal é meta de milhares de brasileiros, em especial daqueles que vivem nas periferias e têm menores chances de ir além do ensino básico. No entanto, para realizar esse sonho, muitas vezes é preciso uma “mãozinha”. E a ajuda pode vir de grandes e médias empresas que, ao se depararem com a falta de mão de obra qualificada, passam a atuar na formação, em ações que contribuem também para a mobilidade social.

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Seja por meio de iniciativas próprias, seja em parceria com Organizações Não Governamentais (ONGs) e escolas comunitárias, essas empresa criaram programas nos quais os jovens que cursam ou são recém-saídos do ensino médio — em especial, mães solo — têm a oportunidade de ampliar horizontes e mudar uma história de vida que parecia já estar escrita em pedra.

Amazon Web Services, Grupo Boticário, Carrefour, IBM, Ingram/BR-Link, iFood, Oracle, Porto Seguro e SAS são apenas alguns das dezenas de empresas engajadas no movimento para as transformações social e digital de pessoas em busca do primeiro emprego. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 11 milhões de jovens não trabalham nem estudam no Brasil. “Queremos conectar os dois grandes blocos de oportunidades”, diz Gabriel Vallejo, vice-presidente sênior de Estratégia de Crescimento da Oracle, referindo-se à necessidade que o setor de tecnologia tem por mão de obra especializada e o enorme número de pessoas desempregadas e sem formação. Segundo estudo feito por entidades e consultorias de Tecnologia da Informação (TI) (Brasscom, IDC), entre 2024 e 2025 a oferta de vagas para profissionais da área estará acima de 400 mil.

Durante a pandemia, ganhou força, sobretudo entre as empresas desse setor, a ideia de que é preciso acelerar esse movimento, adaptando investimentos e estratégias, como a criação de bolsas de estudos e cursos para capacitação destinados a instituições educacionais e ONGs que queiram incentivar esses alunos. Isso serviria para suprir a gigante demanda na área, além de abrir oportunidades para diversificar o mercado, ainda composto majoritariamente por homens brancos, heterossexuais e de classe média. “A meta é atrair novos talentos, contratar mulheres, pessoas pretas e LGBTQIA+ com programas de educação e empregabilidade”, destaca Amanda Gelumbauskas, head do programa Oracle Next Education (One) para a América Latina. A companhia conta com projetos de formação educacional no Brasil e outros 12 países da América Latina. Desde 2021, quando o One foi lançado, 79 mil alunos conseguiram formação na América Latina, dos quais 36,3 mil são brasileiros. Esses estudantes cursam linguagem de programação e aprendem a criar páginas completas, aplicativos e conexão ao banco de dados (back-end), entre outras soluções. A escola Alura, parceira da Oracle, é a responsável pelos conteúdos, e os cursos duram, em média, seis meses. 

No Brasil, a Oracle mantém parceria com outras 115 empresas que atraem e empregam os novos profissionais. Na América Latina, já foram contratadas 10 mil pessoas (2,8 mil no Brasil). Amanda enfatiza o desafio de entregar 40 mil bolsas por ano e tornar o One um programa global. “Fazemos campanhas de ativação nas comunidades. Os interessados se inscrevem na plataforma e são contemplados com as bolsas se preencherem os critérios.”  É preciso ter 18 anos, cursar ou ter concluído o ensino médio em escola pública e não estar trabalhando em tecnologia — e, claro, ter tempo para estudar, no mínimo, quatro horas por dia. 

O mesmo propósito move a iFood, com 200 mil entregadores cadastrados e muita gente com vontade de mudar de vida e crescer profissionalmente. O empurrão foi dado em 2021, com a criação do Potência Tech, que, até março, distribuiu 100 mil bolsas aos parceiros do programa: Ada Tech, Cubos Academy, DIO, Fundação Estudar, Oracle, entre outros. Até agora, são 12 mil alunos formados e 5 mil empregados na área de Tecnologia, ampliando a renda familiar em até três vezes, segundo dados da empresa. A diretora de Educação do iFood, Renata Citron, afirma que as bolsas buscam diversidade, com mulheres, negros, comunidade LGBTQIAPN+ e pessoas de baixa renda dentro do universo de entregadores e, também, na base de restaurantes cadastrados.

É o caso de Kennya Lopes André, de 28 anos, que mora em Brasília (DF). A ex-entregadora ganhou uma bolsa de estudos do programa, cursou programação pelo Potência Tech e, desde janeiro, trabalha como desenvolvedora de back-end na empresa, com salário mensal de R$ 6,7 mil. Nada mal para quem entregava pizzas e conseguia, no máximo, R$ 2,5 mil por mês. “Eu não fazia ideia do que era programação e, hoje, aplico os meus conhecimentos trabalhando na área”, diz, orgulhosa. 

Renata lembra que muitas dessas bolsas não têm processo seletivo. “Avaliamos se os candidatos têm raciocínio lógico, essencial para aprender a programar”, mas ressalta que nenhum deles precisa de experiência prévia na área. São aulas online ou híbridas com interação dos monitores e carga horária de 200 a 400 horas, em cursos que podem durar de três meses a um ano. “Temos 70 turmas com nossos parceiros e acreditamos que é uma carreira que chega a um público vulnerável, mas com grande potencial”, observa Renata. 

Estudo encomendado pelo iFood a uma consultoria de avaliação de impacto detectou que um terço dos participantes do programa consegue se inserir no mercado, enquanto 59% deles estão com emprego fixo em empresas de TI. Os investimentos diretos e dos participantes do Potência já somam a R$ 20 milhões. A Amazon Web Services (AWS), por sua vez, quer investir R$ 15 milhões nos próximos dois anos na formação de alunos em parceria com a Escola da Nuvem (EdN), uma ONG que conecta os novos formados a potenciais empregadores. Os candidatos não precisam conhecer a tecnologia previamente, mas é essencial que tenham vontade de aprender. “Eles fazem testes de matemática, lógica e leitura antes de serem selecionados. Essas avaliações servem para avaliar a necessidade de reforço no acompanhamento das aulas ao vivo”, explica Ana Letícia Lucca, diretora de Receita da EdN. A instituição foi criada em 2020 por Rafael Marangoni, à epoca CEO da BRLink, do grupo Ingram Micro, e Flávio Rescia, da Darede.

Ambos chamaram outras empresas para o projeto, e, hoje, a EdN conta com 17 apoiadoras e 419 empregadoras. A AWS é a principal parceira estratégica. “Queremos pessoas não representadas no ambiente digital até o fim de 2025. Esperamos capacitar 6 mil profissionais no Brasil, sendo 3 mil com certificações da AWS e as demais encaminhadas às vagas de emprego”, conta Ana Letícia. “No ano passado, formamos 3.407 alunos e empregamos, até agora, 53% deles, mas esse número pode aumentar até junho”, espera a executiva. “Os contratados assumem posições juniores em Desenvolvimento de Software, Análises de Infraestrutura de Nuvem e Suporte, com salários de R$ 3 mil a R$ 4 mil”, afirma Guilherme Barreiro, diretor da BRLink.

Para diversificar ainda mais, Ana Letícia informa que criou, em 2022, um processo seletivo. “Com esse recorte, tenho um olhar mais detalhado do público que quero promover, pois recebo a identificação socioeconômica e de qual grupo o candidato participa.” Neste ano, foram montadas aulas presenciais equipadas com computadores para atender quem só tem celular, além de mentorias que preparam o aluno nas soft skills, as tais habilidades necessárias para lidar com capacidades intuitivas. Muitos dos mentores são os próprios funcionários das empresas parceiras da EdN.  

Beleza que gera renda

A Porto Seguro e o Grupo Boticário são empresas que priorizam o setor de beleza em seus projetos profissionalizantes. A associação Crescer Sempre, mantida pela Porto Seguro e pela família Garfinkel, do mesmo grupo, comemora 26 anos na comunidade de Paraisópolis, na capital paulista, onde vivem 120 mil pessoas. Além de escolas de ensinos fundamental e médio, a Crescer mantém cursos profissionalizantes de cabeleireiro, manicure, design de sobrancelhas, elétrica, hidráulica, básico de informática e redes digitais em parceria com a Porto Seguro Serviços, o Senac e o Espaço Arlete Hair Design. 

Segundo Suellen Braga, diretora de Relações Institucionais da Crescer Sempre, anualmente, são inseridos no mercado cerca de 600 alunos e alunas. “Nosso foco também são as mães com filhos no ensinos fundamental e médio da Crescer e que precisam gerar renda imediata. Elas buscam o ensino profissionalizante e, se tiverem interesse, se transformam em professoras de beleza dentro da nossa escola, mantendo uma clientela na própria comunidade, de onde não querem sair”, explica. Assim, elas vão se especializando e complementando o conhecimento com outros cursos.

Jessyleny Silva Alexandre, quem tem um filho adolescente na Crescer, foi além da formação de manicure. “Fiz todos os cursos de profissionalização de beleza e sou professora de manicure, design de sobrancelhas e depilação. Além disso, faço especialização em Podologia no Senac”, conta. O próximo passo de Jessyleny é a graduação em Pedagogia e, possivelmente, uma pós-graduação. Dentre os critérios exigidos pela Crescer, destacam-se morar na comunidade, ter mais de 18 anos e renda de até 1,5 salário mínimo (a média é de R$ 700/mês).

Já o Empreendedoras da Beleza, programa do Grupo Boticário, oferece formação gratuita para mulheres de baixa renda desde 2021. A empresa quer ampliar o grupo inscrito com mais mulheres pretas, trans ou de pouca escolaridade. “O objetivo é que elas tenham liberdade financeira e oportunidade para transformar as próprias vidas por meio da beleza”, diz Flávia Sampaio, gerente de Impacto Social do Grupo Boticário. Mais de 43 mil mulheres já estão formadas, e, até 9 de junho, o Grupo Boticário abrirá 200 mil vagas para novos cursos de penteado, manicure, maquiagem, criação de conteúdo digital, desenvolvimento pessoal e empreendedorismo. 

Barbara Oliveira Annima de Mattos
Barbara Oliveira Annima de Mattos