A literatura brasileira é marcada por uma complexidade que nos desafia sempre que tentamos compreendê-la. Vários escritores entram e permanecem naquilo que chamamos de cânone literário. Outros, porém, lançam os primeiros livros e desaparecem. Terceiros, ainda (mais raros!), alcançam sucesso na estreia, desaparecem e retornam — anos depois — com ainda mais força. Neste último caso, temos Carolina Maria de Jesus.
Carolina lançou-se na literatura em 1960, com a publicação da sua obra mais conhecida: Quarto de despejo — diário de uma favelada. A narrativa, um híbrido entre diário, autobiografia e relato memorialístico, denuncia o dia a dia sofrido da autora e da própria família, moradores da antiga favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, que foi desocupada e extinta para a construção da Marginal Tietê. Em seu trabalho como catadora de papel, Carolina recolhia livros e revistas e os guardava em seu pobre barraco, formando uma espécie de biblioteca doméstica. Foi nesse processo de coleta e leituras variadas que, certamente, teve despertado o desejo de escrever e registrar o cotidiano marcado pelo sofrimento, pela exclusão social, pela fome e pelas dificuldades na criação dos filhos naquele espaço marcado pelas mais diferentes experiências de miséria: financeira, humana, sentimental e existencial.
Em 1958, o jornalista Audálio Dantas, enviado pelo jornal Folha da Noite, foi até a favela do Canindé fazer uma reportagem sobre as péssimas condições de vida daqueles moradores. Foi quando conheceu a catadora de papel que, naquela época, já tinha algumas páginas escritas de uma espécie de diário íntimo. Por orientação de Dantas, Carolina organizou melhor os seus relatos, conferindo um formato mais coeso e coerente com uma roupagem literária. Dois anos depois, o livro foi publicado pela prestigiada editora Francisco Alves, alcançado um verdadeiro sucesso no mundo editorial brasileiro, com mais de 100 mil exemplares vendidos apenas no primeiro ano. A seu respeito, afirmou o crítico literário Alceu Amoroso Lima: “Terá sido o enorme êxito do diário de Carolina Maria de Jesus apenas um produto da publicidade comercial ou da moda? Não creio. Nem creio que se trate apenas de um êxito político ou mesmo de um simples documento social. […] É um livro belo e trágico com todas as suas imperfeições, mais ou menos dirigidas, porque é livro verdadeiro”. O livro, que foi um grande sucesso, traduzido e publicado em diferentes países, transformou a autora numa verdadeira celebridade, na grande “novidade literária” brasileira do início dos anos 1960. Carolina deixou a favela do Canindé e mudou-se com os filhos para outras regiões de São Paulo, melhorando um pouco de vida e saindo da condição de favelada. Publicou outros livros de temáticas semelhantes: Casa de alvenaria, Pedaços de fome, Provérbios e o excelente Diário de Bitita (póstumo). Faleceu em 1977, vítima de insuficiência cardíaca.
A bem da verdade, por algumas décadas, a obra da autora caiu num certo esquecimento. Sabíamos da sua existência, mas era um tanto ignorada pelo público leitor. Felizmente, nos últimos dez anos, os escritos de Carolina Maria de Jesus ganharam uma expressiva força crítica e editorial, recebendo novas publicações e despertando um interesse significativo de um novo público leitor, especialmente o universitário — que, em geral, é ávido por novas possibilidades de leitura e investigação. A produção de Carolina — especialmente Quarto de despejo e Diário de Bitita — tem sido analisada sob as mais diferentes linhas críticas da contemporaneidade: escrita feminina, literatura social, autobiografia, literatura identitária, escritas do eu, autoficção etc. Essa quantidade de pesquisas e propostas objetivam compreender tal literatura em diferentes chaves de interpretação, à luz dos debates mais atualizados dos estudos literários.
Tudo isso comprova a força de Carolina Maria de Jesus e da sua obra que despertou um imenso sucesso aquando da publicação, mas que também foi vítima de incompreensões por parte de muitos críticos e de certos setores da imprensa especializada. Mesmo assim, décadas depois, Carolina continua forte e sendo lida, reeditada e pesquisada, sinal de um considerável amadurecimento crítico do nosso mundo literário.
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