Artigo

Apostas, influenciadores e a terra arrasada

Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Tudo o que sei sobre Virginia Fonseca é contra a minha vontade. O mesmo vale para Gkay, Viih Tube, Eliezer, Primo Rico e companhia. A fama desses influenciadores digitais, capazes de mobilizar multidões de pessoas, é tão impressionante que fura nossas bolhas seguras nas redes sociais. E, do nada, você fica sabendo que Virginia é esposa do filho do cantor sertanejo Leonardo e que ganha milhões, inclusive expondo as filhas. Outra que faz o mesmo é Viih Tube, que, não sei como, já teve o segundo filho e faz vídeos ostentando presentes de milhares de reais. Tem também o Primo Rico, que produziu um vídeo (ALERTA DE GATILHO! Não leia o resto desta frase se estiver sensível, passe para o próximo parágrafo) mostrando um feto abortado pela esposa. Um negócio de revirar o estômago.

Essas pessoas são o que se tem chamado de criadores de conteúdo digital, seja lá o que for isso, dado que não são experts em nada, tampouco fizeram algum feito relevante que merecesse ser compartilhado. Mesmo assim, ganham muito dinheiro na internet. Por meio de patrocínios de marcas, publicações financiadas, comércio de produtos e até venda de aconselhamento, eles vão transmitindo o próprio cotidiano — além do estilo de vida artificialmente forjado para plataformas digitais —, influenciando hábitos e comportamentos de seus seguidores. E se esse contexto já não fosse desolador o bastante, muitos desses influenciadores embarcaram na onda das casas de apostas online e viraram garotos-propaganda do jogo.

As apostas começaram a ser liberadas no Brasil pela Lei 13.756/2018, no governo Temer. Inicialmente, foram legalizadas apostas de cota fixa em eventos esportivos. Naquele momento, a regulamentação ficou para ser feita posteriormente, o que permitiu que a boiada das bets passasse. No governo Bolsonaro, não se fez nada — e por que eu não me assusto com isso? Apenas em 2023, já no governo Lula, foram estabelecidas diretrizes para essa prática, com a Lei 14.790/2023, e, em 2024, foi criada a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) no Ministério da Fazenda (MF).

Diante das denúncias de lucros exorbitantes das casas de apostas e dos ganhos absurdos de influenciadores digitais, o Senado Federal instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “investigar […] a crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, além da possível associação com organizações criminosas envolvidas em práticas de lavagem de dinheiro, bem como o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação dessas atividades”. O fato é que, desde a liberação dos jogos de azar no País, os brasileiros vêm perdendo quantias absurdas em sites de apostas. A Polícia Federal calcula que, só de dinheiro de beneficiários do Bolsa Família, R$ 3 bilhões foram parar nas mãos dessas empresas. E é aí que entram os influenciadores: eles convencem os fãs a apostarem e lucram com a desgraça alheia. Virginia, por exemplo, ganharia 30% de tudo o que seus seguidores perdessem em uma das plataformas com a qual tem contrato. Sórdido.

No ano passado, foram gastos cerca de R$ 68,2 bilhões em apostas no Brasil. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), esse volume de custos equivale a 0,62% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, 0,95% do consumo total e 1,92% de toda a massa salarial brasileira. A agência de consultoria Strategy& Brasil avalia que as apostas representam 76% das despesas de lazer e cultura das classes D e E — e até já avança nas despesas com alimentação dos mais pobres, correspondendo a 5%. Após a regulamentação, que barrou empresas problemáticas — autorizando apenas 66 a atuar no País, exigindo, ainda, R$ 30 milhões em outorga à União —, o governo federal calcula arrecadar R$ 1,866 bilhão anual em taxação dessas empresas.

No entanto, há que se fazer um debate mais amplo. Será que os ganhos do governo com a taxação superarão os gastos com o empobrecimento e o adoecimento em massa da população? Estamos falando de uma epidemia de vício em jogos, num país em que a população pobre é o alvo mais vulnerável. Somado a isso, há o marketing digital agressivo de influenciadores cool nas plataformas digitais, que seduzem facilmente esse público.

É como disse, de forma perversa e irônica, Virginia — vestindo um moletom com o rosto de sua filha e uma fortuna estimada de R$ 400 milhões —, no início da sua sabatina na CPI das Bets: “Que Deus abençoe nossa audiência. Bora pra cima!”.

Enquanto isso, imagino que milhares de reais de apostadores miseráveis aumentaram o seu extrato bancário…

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.