Nos últimos anos, temos percebido uma enorme confusão entre estudos literários e causas identitárias, entre luta social e especificidades da literatura, entre criação literária e ideologias político-ideológicas. O que fazer? Existe um ponto de equilíbrio? O que restou da literatura tout court?
As pautas identitárias entraram de vez na agenda dos debates e dos valores a serem questionados. Próprias de um discurso das esquerdas políticas, tais pautas têm importância de ser e de existir, ainda mais num país historicamente injusto como o Brasil. Entretanto, um problema é a migração dessas demandas para o campo da crítica literária. Nos últimos anos, nos programas de pós-graduação em Estudos Literários, a cada 10 projetos de pesquisa, em média, 8 ou 9 trazem propostas investigativas interligando pautas identitárias a um objeto específico. Em outras palavras, temos visto um intenso movimento de compreender obras e autores apenas pelo “filtro” político dessas correntes de pensamento.
Tenho visto, com extrema preocupação, situações e pessoas que insistem em classificar Lúcio Cardoso como o “grande escritor gay brasileiro”, ou projetos que carimbam Clarice Lispector como uma “autêntica romancista lésbica brasileira”. Também encontramos aberrações do tipo “lutas da negritude em Cruz e Souza” ou “políticas raciais em Machado de Assis”. Quando digo que se trata de uma aberração, não estou exagerando. Em nenhum momento das respectivas obras, Lúcio Cardoso e Clarice Lispector problematizaram a questão da homossexualidade a ponto de serem identificados como “autores gays” ou terem escrito uma “obra gay”. Se há um ou outro personagem do universo homossexual (caso de Timóteo, na Crônica da casa assassinada), é apenas uma questão de representação individual, não indício para termos uma “obra gay”.
Numa outra perspectiva, mas no mesmo raciocínio, em Cruz e Souza e Machado do Assis também não encontramos problematização das questões raciais. Eram escritores negros? Sim, mas que não refletiram tal situação — pelo menos com a mesma intensidade e metodologia que se faz hoje em dia — nas próprias produções literárias. Lamento que um Machado de Assis não tenha levantado esses problemas à época, pois acho que o gênio machadiano nos forneceria grandes reflexões acerca do assunto. Mas isso não ocorreu, infelizmente.
Penso o quanto temos perdido — em termos de investigação científica — obras e autores que não refletiram, na produção literária, essas pautas identitárias. Lembro aqui de Augusto Frederico Schmidt, Octávio de Faria, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Adélia Prado, Bruno Tolentino, os parnasianos, os simbolistas e tantos outros. Não merecem mais serem estudados? O problema não é simples. Ao contrário, tem despertado tensão entre pesquisadores, orientadores, professores e alunos. Outro dia, um amigo questionou: “O que restou do texto literário sem a interseção de questões político-ideológicas?” Respondi-lhe: “Sinceramente, não sei!”
Com honestidade, acho que vivemos um momento de grande tensão — dos costumes, da política, dos comportamentos, das sensibilidades e, também, das militâncias. Entretanto, até que ponto é produtivo um “filtro ideológico” na investigação literária? Sou muito cético em relação a esses assuntos. A literatura pode representar problemas e demandas sociais e pode servir como um espaço de denúncia, mas não apenas isso; há também a literatura preocupada com as dimensões puramente estéticas do texto e da criação — e isso não pode ser ignorado.
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