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Capitólio: a morte no paraíso

Herbert Carvalho
é jornalista, escritor e mestre de xadrez. É autor do livro Alguma coisa acontece... a cidade de São Paulo em 22 depoimentos. (Editora Senac, São Paulo)
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Herbert Carvalho
é jornalista, escritor e mestre de xadrez. É autor do livro Alguma coisa acontece... a cidade de São Paulo em 22 depoimentos. (Editora Senac, São Paulo)

Se o desprendimento da rocha que matou dez ocupantes de uma lancha no Cânion de Furnas (MG), no dia 8 janeiro deste ano, tivesse ocorrido um dia antes, estas linhas não seriam escritas: lá estávamos, eu e minha companheira, numa embarcação semelhante, no mesmo local e horário da tragédia consumada. Apenas 24 horas separaram o alívio dos nossos parentes, preocupados diante das imagens que percorreram e chocaram o mundo, do luto dos familiares que perderam entes queridos na mesma Minas Gerais dilacerada pelas vítimas de Brumadinho e Mariana.

A própria Capitólio – um dos 34 municípios mineiros banhados pela represa que alimenta a hidrelétrica de Furnas, e o que mais concentra o turismo na região que abrange também a Serra da Canastra – já fora cenário, há um ano, de outra armadilha da natureza contra turistas desavisados. No dia 2 de janeiro de 2021, uma cabeça d’água colocou fim à vida de três jovens surpreendidos na cachoeira da Cascatinha. Seus corpos foram arrastados pela correnteza até o mesmo lago de Furnas, onde, agora, os bombeiros recolheram os restos retalhados pelo quartzito.

Rocha metamórfica de grande dureza, que reveste os paredões do cartão postal de Capitólio, o quartzito compõe apenas uma das camadas de negligência do processo que substituiu a sua mineração pelos ganhos ainda mais significativos do turismo predatório e descontrolado. Até o ano 2000, o belíssimo cânion – cujos contornos são mais acentuados quanto mais baixo estiver o nível do reservatório – era conhecido apenas por pescadores e proprietários de ranchos. 

Uma balsa e uma escuna, colocadas por dois empresários locais, fizeram explodir os passeios comerciais para diversos tipos de embarcação, atraindo gente de todo o País. Devido à proximidade com a rodovia MG-050, o local passou a ser acessado também por cima, para a prática de escalada em rocha e rapel na cachoeira.

Antes reduto silencioso de contemplação, a catedral da natureza transformou-se em barulhento vale-tudo para obtenção daquela foto destinada a render likes e comentários nas redes sociais. Uma imagem do início da década de 2010 mostra tamanha aglomeração de lanchas e pessoas que, se a rocha caísse então, o número de vítimas competiria com aquele que resultou do incêndio na boate Kiss (2013).

Em 2019, foi criada, pela Marinha, a Delegacia Fluvial de Furnas, para a fiscalização náutica do lago. No mesmo ano, a prefeitura de Capitólio proibiu banhos no cânion e limitou a 40 o número de embarcações, que podem permanecer no máximo até 30 minutos. Mas não se estabeleceu, porém, uma distância mínima das paredes rochosas.  

Nunca houve, também, análise geológica estrutural, embora, desde 2019, um megaprojeto turístico esteja sendo construído por lá. Em 2021, no chamado Mirante dos Cânions, foi inaugurado o Parque das Aventuras, com ponte pênsil e tirolesa. Perfurações no solo, para suportar o peso das edificações, podem ter abalado os paredões, possibilidade investigada no inquérito sob responsabilidade da Polícia Civil.  

Uma coisa é certa: mantidos desinformados, nós, turistas, estávamos alheios ao perigo. Se a Lei Geral do Turismo fosse observada, deveria ter sido implementado um Sistema de Gestão da Segurança (SGS) por parte das operadoras, além da fiscalização e do monitoramento do risco geológico por parte das autoridades. A proibição dos passeios e os cancelamentos em massa das reservas em Capitólio indicam que a desídia, além de matar pessoas, pode tirar o ganha-pão de muitas outras.

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