Artigo

Cartas que falam

Leandro Garcia
é professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Academia Petropolitana de Letras (APL)
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Leandro Garcia
é professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Academia Petropolitana de Letras (APL)

Está se fortalecendo, cada vez mais, uma área de pesquisa nos estudos literários brasileiros que se expande muito nas universidades brasileiras: os estudos epistolográficos, isto é, investigações teóricas em torno de cartas, correspondências, arquivos literários, manuscritos pessoais e outras tipologias textuais em torno da epistolografia.

A escrita e a troca de cartas são práticas realmente antigas que remontam há muitos séculos. Evidências históricas registram as primeiras missivas no fim do quarto milênio antes de Cristo, possivelmente na época suméria. Durante a Antiguidade, a escrita epistolar foi intensificada e dinamizada, com profissionais — os escribas — especialmente designados para esse trabalho, que tinha até mesmo os próprios códigos estilísticos quanto à forma e ao conteúdo. Algumas cartas mais teóricas tornaram-se verdadeiros tratados de estética literária, sendo analisadas e utilizadas até os dias de hoje.

A bem da verdade, no Brasil, epistolários dos mais variados remetentes e destinatários sempre foram publicados — que o diga a correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, organizada e divulgada por Graça Aranha, em 1923. Com o advento e o fortalecimento do nosso modernismo, a troca de missivas realmente ganhou um caráter decisivo de pensamento: escreviam-se cartas para pensar, para teorizar e para questionar opiniões, num claro movimento de “laboratório epistolar de ideias”.

O gigantismo epistolar de Mário de Andrade sempre é lembrado, mas também não se pode esquecer de Alceu Amoroso Lima, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Octávio de Faria, Câmara Cascudo, e tantos outros epistológrafos que usaram e abusaram dos nossos Correios e Telégrafos.

Nas últimas décadas, em diversos programas de pós-graduação em Letras do Brasil, tem-se acompanhado uma maior sistematização da pesquisa epistolográfica. No entendimento de muitos pesquisadores do gênero epistolar, não se deve publicar apenas o texto da carta, mas também produzir, a partir desse conteúdo, uma verdadeira pesquisa no sentido de contextualizar essa mesma mensagem com as mais diferentes dinâmicas: o seu contexto de escrita, a relação entre remetente e destinatário, o momento histórico, as pessoas e situações citadas, as relações de amizade ou inimizade, os grupos envolvidos, enfim, todo o universo em torno de um conteúdo.

Com esse esforço, tem-se presenciado um gradativo fortalecimento dessa área de pesquisa nos estudos literários brasileiros, o que tem permitido a realização de inúmeras avaliações e reavaliações dos mais diferentes cânones, biografias e entendimentos críticos engessados pelo tempo. A organização e a publicação de uma correspondência não trazem a lume apenas um novo epistolário, mas toda uma relação de amizade entre remetente e destinatário que, ao longo do tempo de sua troca, ajudou a pensar e repensar a obra, o estilo e o projeto artístico de cada um.

Nunca se publicou tanta correspondência no mercado editorial brasileiro como nos últimos 30 anos. Algumas edições foram preparadas com esmero e critério científico, outras, não. Todavia, o saldo é mais positivo do que negativo, pois cada epistolário que se revela traz consigo todo um mundo de sentimentos e sociabilidades que estava escondido, na maioria das vezes, em arquivos e guardados pessoais. Carta é narrativa, é troca, é mensagem que se envia e se recebe. Enfim, as cartas falam.

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