De todos os nomes da literatura brasileira, o de Clarice Lispector é, certamente, um dos mais importantes, conhecidos e traduzidos. Autora de uma obra singular, atemporal e epifânica, Clarice continua despertando novas paixões e confirmando antigas, já que existe uma espécie de leitor cativo que lê, divulga e defende a autora. Dos vários aspectos de sua obra, um deles ainda não foi devidamente analisado pela crítica especializada: os diálogos com a fé e a transcendência.
Nascida na Ucrânia e de origem judaica, Clarice Lispector chegou ao Brasil ainda criança e foi aqui que produziu e desenvolveu a escrita literária. Num primeiro momento da vida profissional, atuou no jornalismo, como repórter, com certa predileção por matérias e temas ligados à cultura. Pela própria herança e relação familiar com o judaísmo, foi-lhe impossível ignorar Deus e seus mistérios, o que leva alguns de seus principais biógrafos a afirmar que ela tinha uma relação difícil com a própria religião. Sabe-se que ela não praticava nenhum preceito religioso, mas se relacionava de forma profunda com o sagrado, ainda que por vias literárias — “Eu quero simplesmente isto: o impossível. Ver Deus! Ouço o barulho do vento nas folhas e respondo ‘sim!’”.
O crítico literário católico Alceu Amoroso Lima, por quem Clarice tinha uma profunda admiração, certa vez fez a seguinte afirmação sobre a autora de A hora da estrela: “A presença da transcendência divina em Clarice Lispector constitui a nota típica diferencial — tanto metafísica como psicológica e estilística — dessa inclinação planetária, que caracteriza tanto os grandes prosadores como os grandes poetas de nossa literatura pós-modernista”. A observação de Amoroso Lima é cirúrgica ao afirmar que tal aspecto (a questão religiosa) é o que “constitui a nota típica diferencial, tanto metafísica como psicológica e estilística” da sua obra.
Numa outra entrevista, Clarice forneceu uma pista: “Eu não tenho fé em Deus. A sorte é às vezes não ter fé. Pois assim poderá ter a Grande Surpresa dos que não esperam milagres”. Interessante ressaltar que a autora grafou “Grande Surpresa” em letras maiúsculas. Seria Deus essa Grande Surpresa? Creio que seja possível, pois Clarice foi daqueles artistas que tinham fé, mas uma fé como experiência transcendental que não depende de igrejas, credos e religiões organizadas e institucionalizadas. A sua fé era uma espécie de entrega ao Mistério, ao Indizível, ao Desconhecido… enfim, à Grande Surpresa.
Em 1969, a autora entrevistou Amoroso Lima para a coluna na revista Manchete. A seguir, encerro com a pergunta e a resposta.
“— Dr. Alceu, uma vez eu o procurei porque queria aprender do senhor a viver. Eu não sabia e ainda não sei. O senhor me disse coisas altamente emocionantes, que não quero revelar, e disse que eu o procurasse de novo quando precisasse. Pois estou precisando. E queria também que o senhor esclarecesse sobre o que pretendem de mim os meus livros.
— Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores que não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é a personagem maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse autor não é deste mundo (…)”.
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