Em 1992, o Brasil assistiu, atônito, à queda de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura militar. Acusado de corrupção, Collor enfrentou um processo de impeachment que galvanizou a sociedade — nas ruas, o movimento estudantil dos caras-pintadas simbolizavam uma indignação juvenil que parecia inaugurar uma nova era de cidadania ativa.
A notícia da prisão de Collor, 33 anos depois, encerra um ciclo de ironias históricas. Condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a mais de oito anos de prisão, o ex-presidente ressurge como um personagem de um Brasil que, entre avanços e retrocessos, ainda debate os mesmos dilemas éticos e institucionais de 1992. No podcast O Assunto, do portal G1, jornalistas reconstituíram essa trajetória, apontando para um contraste perturbador: a sociedade, que há três décadas sonhava em passar o Brasil a limpo, hoje, parece ter se habituado à desilusão.
Ao serem observadas as reações públicas à prisão em 2025, chama a atenção menos o choque e mais a indiferença. A sociedade, que pintou os rostos de verde e amarelo nos anos 1990, agora responde com memes e ironias. A apatia substituiu a esperança — mas a perda de confiança não é apenas efeito do tempo. Foi construída, em boa parte, pelas próprias instituições e, em especial, pelas promessas não cumpridas da Lava Jato.
A operação surgiu como uma nova epifania cívica. Durante anos, cultivou a ilusão de que a corrupção seria finalmente enfrentada de forma sistêmica. Mas o que se viu, depois de denúncias de abusos de autoridade, de manipulações políticas e de excessos judiciais, foi a erosão da confiança na imparcialidade da Justiça. Em vez de fortalecer a democracia, a Lava Jato minou as bases do Estado de direito, ao romper com garantias fundamentais sob o pretexto de combater o crime a qualquer custo. Por fim, ao lado dos escândalos políticos, o Brasil herdou também uma Justiça questionada — e uma cidadania ainda mais cética.
Em 1992, a queda de Collor foi vivida como uma vitória das instituições. Em 2025, a prisão do mesmo Collor soa quase como uma nota de rodapé de um processo histórico marcado pela frustração. Como lembrou O Assunto, a diferença entre as duas épocas é brutal: enquanto antes se acreditava que era possível regenerar a política por meio da punição dos culpados, hoje duvida-se da própria capacidade das instituições de operarem sem interesses ocultos. A ficção de Vale Tudo, exibida em 1988 pela TV Globo, parece ter se transformado em documento histórico. “Vale a pena ser honesto no Brasil?”, perguntava-se a novela. Se em 1992, a resposta parecia ser um sim combativo, em 2025, surge tingida de cinismo.
É impossível olhar para esse período sem lembrar do escândalo dos Anões do Orçamento, revelado em 1993, que expôs um esquema de desvio de recursos públicos por meio de emendas parlamentares — especialmente as emendas de relator. Mais de três décadas depois, o tema permanece tão atual quanto naquela época. As tais emendas, que deveriam ser instrumentos de correção de desigualdades regionais e de fortalecimento da representação política, voltaram ao centro do debate nacional, agora com valores muito maiores e práticas de opacidade que desafiam o controle público. As emendas de relator transformaram-se em símbolo da apropriação privada do orçamento público, mostrando como certos mecanismos históricos de distorção permanecem vivos, apenas atualizados.
Há, claro, avanços que não devem ser ignorados. O Brasil de hoje tem mais instrumentos de transparência, um jornalismo investigativo mais sólido e órgãos de controle — como Tribunal de Contas, Controladoria-Geral da União e Ministério Público — mais estruturados e atuantes, além de reformas políticas importantes. A reforma eleitoral de 2017, por exemplo, que proibiu as coligações nas eleições proporcionais, representou um passo relevante para tornar o sistema partidário menos fragmentado e para fortalecer o vínculo entre representantes e eleitores. São mudanças que, mesmo longe de resolver todos os problemas, ajudam a construir uma democracia mais madura.
No entanto, o desgaste gerado pela instrumentalização política da Lava Jato, e por anos de escândalos em série, deixou cicatrizes profundas. Muitos brasileiros passaram a ver a luta contra a corrupção não como um projeto nacional, mas como uma disputa de facções, comprometendo qualquer possibilidade de um pacto democrático mais forte.
A prisão de Collor é, assim, ao mesmo tempo simbólica e melancólica — reafirma que figuras públicas ainda podem ser responsabilizadas, mas também evidencia que o Brasil ainda não encontrou o equilíbrio entre Justiça, democracia e responsabilidade institucional. O sonho de 33 anos atrás era o de construir uma democracia robusta baseada na ética pública. A realidade de atual é a de uma democracia mais frágil, desconfiada de si mesma.
Se o Brasil mudou de 1992 para cá, mudou menos na direção que gostaríamos. Deixamos para trás uma ingenuidade saudável, mas não conseguimos substituí-la por um projeto coletivo de regeneração democrática. Em vez disso, convivemos com um ceticismo que, se não for canalizado para a construção institucional, correrá o risco de alimentar novos ciclos de autoritarismo e descrença.
No fim das contas, a pergunta de Vale Tudo permanece aberta. E a resposta, agora, depende não de grandes operações salvacionistas, mas de um trabalho árduo, paciente e profundamente democrático — o tipo de transformação que não se faz com aplausos fáceis, mas com persistência e responsabilidade.
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