No encontro do G20 realizado em Nova Deli, em setembro deste ano, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, fez o lançamento de um projeto ambicioso que conta com as parcerias de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, União Europeia — em especial França, Itália e Alemanha — e Israel. Trata-se do corredor econômico ligando a índia ao Oriente Médio e à Europa (IMEC, da sigla em inglês), que tem como objetivo principal concorrer com a Nova Rota da Seda, o grande projeto de interconectividade econômica global liderado pela China.
Crescimento econômico conjunto, criação de hubs comerciais, desenvolvimento e exportação de energia limpa, construção de sinergias comerciais e produtivas e garantias de segurança alimentar e de cadeias de oferta são os principais objetivos anunciados pela parceria. Para tanto, prevê-se a construção ou o aperfeiçoamento de conexões portuárias e de linhas de ferro, rotas rodoviárias, tubulações para transporte de hidrogênio e cabeamentos de fibras óticas de alta densidade. A promessa é reduzir o tempo de transporte entre a zona da União Europeia e a região da Índia em 40%, assim como baixar os custos em 30%.
Ocorre que a Índia vislumbra a oportunidade de se tornar um dos principais atores econômicos globais, mesmo que isso implique acirrar a rivalidade com a China. Frente a isso, Modi tem promovido estreita aproximação com Israel, cujo ponto culminante foi a sua visita — a primeira de uma autoridade máxima do país — a Tel Aviv, em 2017. Contribuíram para isso algumas afinidades eletivas, como o nacionalismo hindu do seu governo, alinhado com a extrema direita, e o consequente posicionamento refratário à população mulçumana. Além de projetos conjuntos para o desenvolvimento de tecnologia, cibersegurança e agricultura, a Índia é compradora de cerca de 50% do armamento produzido por Israel.
Orçado em US$ 20 bilhões, o IMEC terá de enfrentar enormes desafios, dentre eles a dianteira de dez anos da China no seu megaprojeto, que conta com algo em torno de US$ 1 trilhão de investimento, com mais de 150 países participantes — inclusive, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes também aderiram. Outro problema é que o Porto de Haifa, em Israel, a última parada da rota comercial antes de seguir para a Europa, teve o controle adquirido, em 2021, pelo grupo chinês Port Group. Da mesma forma, o Porto de Piraeus, na Grécia, a porta de entrada dessa rota comercial na Europa (67% deste pertencem à empresa chinesa Cosco).
Entretanto, o principal obstáculo à realização do projeto é a instabilidade política na região do Oriente Médio, principalmente na Palestina ocupada. De olho no dinheiro, os países árabes envolvidos no empreendimento (Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Jordânia) mantinham um processo de normalização das relações com os israelenses, embora a assim chamada “questão palestina” permanecesse sem resolução. Em avaliação conjunta com a Índia, a Arábia Saudita foi ainda mais cautelosa, considerando que a instabilidade prejudicial aos negócios abrange o Afeganistão, o Paquistão, o Irã, o Líbano e o Iraque, todos potenciais aliados num levante palestino. O ataque do Hamas, há cerca de um mês, suspendeu as negociações.
Com pretensões econômicas mais amplas do que os sócios árabes, os sauditas têm uma preocupação especial. Mohammed bin Salman (MBS), príncipe herdeiro e monarca de fato, reconhece que o próprio país é economicamente vulnerável, pois depende da exportação do petróleo. Além das reservas serem finitas, é sabido que a demanda pelo produto nos próximos anos tende a ser decrescente por causa das pressões favoráveis à “energia verde”. Para diversificar a economia do país, o príncipe tem como meta investir principalmente no turismo, nos serviços e na interconectividade comercial.
Com esse intuito, o monarca apresentou, também no G20 deste ano, um dos seus projetos principais, para o qual pretende aportar um US$ 1 bilhão. Batizada de Media Oasis, a proposta é criar uma infraestrutura que converta a Arábia Saudita num centro de produção e distribuição de conteúdo de mídia, inclusive digital. Espera-se, com isso, atrair investimentos, empresas e pessoas com alto poder de compra e, desse modo, dar impulso a outro projeto de envergadura ainda maior. Trata-se da construção de uma cidade litorânea high-tech altamente planificada que funcionará 100% com energia renovável. Localizada na Província de Tabuk, no início do Golfo da Arábia, essa megacidade se chamará Neom. Tendo na margem oposta a turística Sharm el-Sheikh, no Egito, o objetivo do projeto é atrair moradores milionários de todas as partes do planeta que estejam envolvidos com os negócios gerados pelo IMEC, ou que atuem em empresas vinculadas ao Media Oasis, ou, ainda, que simplesmente queiram ter moradia nesse oásis tecnológico.
Tem mais: essa grande proposta saudita ganharia um impulso extra, promovendo maior afluxo de gente rica e negócios internacionais à “futurista” Neom, se fosse concretizado um plano que Israel e Estados Unidos têm na gaveta desde os anos de 1960. O plano consiste na construção de um canal ligando o Mar Vermelho ao Golfo de Aqaba e, por fim, ao Mediterrâneo. Em homenagem ao primeiro primeiro-ministro de Israel, o canal teria o nome de Ben-Gurion, seria uma alternativa ao Canal de Suez para o escoamento do comércio marítimo entre Ásia e Europa.
Criado em 1869, o Canal de Suez (controlado pelo Egito) revolucionou a rota comercial marítima entre a Ásia e a Europa, concentrando, atualmente, um tráfego diário de 50 navios, que correspondem a 2,8 milhões de barris de petróleo, 8% do gás natural, 12% do comércio global e US$ 9 bilhões em carga transportados no mundo. A proposta do Canal Ben-Gurion surgiu durante a Guerra Fria porque os Estados Unidos queriam evitar os danos provocados pela possível perda de controle sobre o canal no caso de o Egito se aliar à União Soviética; a partir dos anos 2000, a preocupação voltou, agora com mais força neste ano, após o convite dos russos à entrada do Egito no Brics+, a ser efetivada em 2024. No mapa abaixo, o novo canal seria o percurso assinalado em verde.
Contudo, dois problemas obstaculizam o projeto. O primeiro é a combinação de custo astronômico com os monumentais desafios de engenharia a serem superados. Orçado em cerca de R$ 100 bilhões, a obra exigirá a escavação de quilômetros e quilômetros do solo ao longo do deserto de Negev, a partir do Porto de Eilat, no fim do Golfo de Aqaba, estabelecendo a ligação entre os mares Vermelho e Mediterrâneo. O segundo obstáculo é o território de Gaza, que fica ao lado do futuro canal. A instabilidade política provocada pela resistência à ocupação seria um risco muito elevado para a atração dos capitais necessários à concretização do projeto, que interessa diretamente a Israel, Estados Unidos, União Europeia e Arábia Saudita.
Gaza (assim como o Líbano, o Egito e a Síria) também é a pedra no caminho dos projetos econômicos de Israel, Estados Unidos e União Europeia por um terceiro motivo: gás natural. Israel sempre enfrentou um problema estrutural de escassez de energia, cujo suprimento dependia da importação de gás, petróleo e carvão, comprometendo parte substancial do seu orçamento. A partir de 2000, investimentos pesados na prospecção de fontes de energia na sua costa mediterrânica permitiram o descobrimento de reservas de gás natural, que podiam ser exploradas tanto para o abastecimento doméstico como para a exportação. A extração desse recurso se mostrou crucial especialmente entre 2011 e 2014, quando o principal fornecedor, o Egito, enfrentou uma grave crise política que levou à queda do governo e à sabotagem da tubulação de gás que chegava ao país.
Também em 2000, a empresa BG Group descobriu duas reservas de gás natural a cerca de 36 quilômetros da costa da faixa de Gaza, contendo em torno de 1 trilhão de metros cúbicos desse recurso energético. Num primeiro momento, essas reservas foram consideradas uma esperança de desenvolvimento econômico para os palestinos; porém, as operações de bombardeio à Gaza se intensificaram, com várias operações desde então, além de ter sido estabelecido um severo bloqueio econômico ao território. Negociações com o BG Group e com a GasProm, empresa russa, nunca foram concluídas devido às discordâncias entre o Hamas e Israel. Tais impasses também emperraram um projeto de exploração conjunta entre Israel, Egito e Palestina que vinha sendo negociado ao longo deste ano. Resultado, o gás natural de Gaza continua à espera de uma produção efetiva.
Frente às sanções econômicas impostas à Rússia e ao Irã pelos Estados Unidos e a União Europeia, tornou-se urgente encontrar uma fonte alternativa de gás para a Europa. Israel, então, emergiu como essa alternativa; mas, para isso, deverá ter o controle das reservas de gás do mediterrâneo, inclusive as que estão sob a jurisdição de Gaza e sob disputa com o Líbano.
Portanto, por detrás de todos os fatores já amplamente conhecidos, o massacre de Gaza tem motivações que somente há poucos dias começaram a ser exploradas por alguns analistas (um dos primeiros foi Richard Medhurst): o Deus Dinheiro! Estados Unidos, Alemanha, França e Itália não apoiam Israel, eles são os seus sócios em projetos que estão ameaçados pela resistência palestina; para os Estados Unidos, ainda mais, Israel é a sua “pequena Otan” na região, como costuma dizer o ex-diplomata britânico Alastair Crook, e como confirmado reiteradas vezes por Biden, * e, mais recentemente, por Robert Kennedy Jr.**, que enfatizou a centralidade israelense para a contenção dos Brics no controle do petróleo e do gás mundiais. Por sua vez, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e a Jordânia não estão inertes simplesmente porque não querem se envolver no conflito, mas sobretudo porque os seus governos também são sócios desses projetos, agora ameaçados pela resistência palestina.
Essencialmente, vivenciamos mais do que uma crise humanitária. Vivemos a crise da própria humanidade, como disse o embaixador chinês na ONU, Zhang Jun. O massacre de Gaza corresponde ao desmoronamento dos valores e ideais ocidentais.
*https://www.google.com/search?q=biden+israel+should+be+invented&sca_esv=582478629&rlz=1C5CHFA_enBR736BR791&sxsrf=AM9HkKmJZ9ryBGAtQvr7LQXH2KTHwWkIoA%3A1700012967418&ei=pyNUZf-QGb_Z1sQP4-m1uA4&ved=0ahUKEwi_gKXo8cSCAxW_rJUCHeN0DecQ4dUDCBA&uact=5&oq=biden+israel+should+be+invented&gs_lp=Egxnd3Mtd2l6LXNlcnAiH2JpZGVuIGlzcmFlbCBzaG91bGQgYmUgaW52ZW50ZWQyBRAhGKABSJhLUKUXWP1FcAR4AJABAJgB1AGgAYoZqgEGMC4xOS4xuAEDyAEA-AEBwgIIEAAYgAQYsAPCAgcQIxiKBRgnwgIEECEYFeIDBBgBIEGIBgGQBgE&sclient=gws-wiz-serp#fpstate=ive&vld=cid:538deb50,vid:86Nrv5izaTs,st:0
**https://x.com/historia_pensar/status/1722367409447641452?s=20
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