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Era uma vez…

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

No dia 10 de julho de 2024, o presidente da França, Emmanuel Macron, publicou uma carta aberta em que afirmava que “ninguém ganhou” as eleições legislativas francesas, realizadas em 7 de julho. 

Além de mentira — pois a Nova Frente Popular saiu vitoriosa do pleito eleitoral —, a declaração agride o sistema político francês que permite a coabitação entre um presidente francês e um primeiro-ministro que pertençam a coalizões políticas adversárias. Isso já aconteceu três vezes na história política da 5ª República francesa desde 1958.

As eleições distritais majoritárias permitem designar um governo com ou sem maioria absoluta na Assembleia Nacional, a Câmara de Deputados da França. Essa também é a regra na qual Macron se apoiou em 2022, quando nomeou um primeiro-ministro de uma coligação presidencial, apesar de não ter conseguido a maioria absoluta na Assembleia. A recusa do presidente francês de nomear um primeiro-ministro da coalizão partidária vitoriosa fere a soberania popular, princípio basilar da democracia. Essa atitude pode ser caracterizada como um golpe (legal) de Estado. 

Do nosso lado do Atlântico, no dia 17 de julho, a Suprema Corte dos Estados Unidos emitiu uma decisão determinando que todos os presidentes norte-americanos, incluindo Donald Trump, têm direito à imunidade judicial em acusações criminais, por “atos oficiais” praticados durante o mandato. A decisão suspende as regras não ditas do sistema político daquele país de checks and balances (“freios e contrapesos” ou Teoria de Separação dos Poderes). 

Na obra Como as democracias morrem (Zahar, 2018), Daniel Ziblatt e Steven Levitsky explicam como as democracias ao redor do mundo estão se enfraquecendo e como líderes autoritários chegam ao poder pelas eleições. A conclusão dos autores é que a soberania popular se destrói quando os próprios mecanismos de defesa não são efetivos o suficiente para impedir a chegada de demagogos no poder. Mas será que os problemas de defesa da democracia estão em determinados “vilões” vistos como “populistas”, “outsiders” e “iliberais”? 

Ziblatt e Levitsky, em Como as democracias morrem, procuram nos vender que o maior perigo para esse regime político seria a vitória de alguns desses personagens que corrompem um sistema que, de outra forma, funcionaria bem. No entanto, como podemos compreender e qualificar Macron, que nunca foi chamado assim, apesar da atitude régia e violadora? Esse argumento dos autores funciona para uma audiência que queira acreditar que os eleitores estejam sofrendo lavagem cerebral, por serem analfabetos políticos. Isto é, argumentos políticos de elitismo do século 19 simplificadores e, acima de tudo, demofóbicos.

Vale lembrar que foi Macron que ajudou Le Pen a se apresentar como a campeã das “pessoas comuns”, ignoradas pelo sistema político, especialmente nas cidades médias e zonas rurais da França. Mais do que isso, a tática do presidente de demonizar a esquerda, a começar pelo partido da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon — apresentado por ele como de “extrema esquerda” —, está, aos poucos, desmanchando a tradicional frente republicana contra o fascismo de Le Pen e afins. Nos Estados Unidos, foram Clinton e, depois, Obama que ajudaram Trump a forjar uma suposta incompatibilidade entre as questões climáticas e ambientais e os interesses econômicos dos trabalhadores. Foram eles também que demonizaram Bernie Sanders e o chamaram de “comunista” e “violador da liberdade”. 

Assim, não se pode esquecer que o chamado establishment político consolidou as normalizações da violência política e do Estado de exceção que vemos avançando em “democracias” cada vez mais demofóbicas.

A democracia liberal, historicamente, está conectada à defesa da soberania popular, à conquista do sufrágio universal, à representação plural e socialmente ampla e à associação de direitos políticos, sociais e econômicos. Essa história (e esse ideal) está sofrendo constante violação pelos sistemas políticos estadunidense e francês. Sistemas esses que garantem a hegemonia de um monopartidarismo competitivo, no qual os partidos se configuram como facções de uma mesma parte, com aumento de dispositivos de neutralização da participação popular nas decisões políticas mais importantes, como aposentadoria, direitos trabalhistas, direitos reprodutivos ou degradação da relação entre salário e poder de compra.

O que Macron defende é um regime político que lembre Bonaparte. O que Donald Trump e Kamala Harris sustentam é a exportação da guerra civil dos Estados Unidos para que não tenham que lidar com o próprio apartheid social. Ambas as “democracias” ocidentais se sustentam na normalização de um Estado de exceção que generaliza o militarismo e a guerra civil. Esses modelos se sustentam na crença de uma missão cristã civilizatória a ser imposta por nações “puras e viris”.

Identificar esses governos que constantemente violam a soberania popular como democracias é subscrever, de maneira acrítica, à ideologia da guerra e ao princípio do império “da liberdade” que acompanham constantemente a história colonial desses países. É acreditar que essas “democracias” terão o mesmo fim ilusório e violento que o beijo da Branca de Neve e da Cinderela criaram. “E foram felizes para sempre.”

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.