Artigo

Limitar celular… Mas só nas escolas?

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
Q
Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Quem viveu algumas décadas neste mundo se impressiona com as ondas de tendências comportamentais em tom de milagre. Solução fácil para problema complexo existe faz décadas. Agora, vivemos o capítulo que demoniza o celular em sala de aula nas escolas durante o ensino básico. Quem leciona sabe que o problema é real, mas alguns aspectos precisam ser trazidos ao debate.

Não basta proibir o uso desses equipamentos nas escolas. A matriz atitudinal não suporta esse tipo de comportamento se uma série adicional de elementos não for alterada. Não estamos apenas diante de uma geração que não vai aprender (ou aprender menos) porque desvia a atenção para as telas dos móveis. Tampouco estamos falando somente de estudantes, ou seja, por mais essenciais que sejam a reflexão e a atitude de restrição, há mais pessoas envolvidas nesses esforços que terão de, igualmente, entrar nesse jogo. 

Em resumo: restringir (ou limitar) celulares é como tratar vícios. É coisa séria e merece muita atenção do Estado — serve, assim, para todos, a despeito da idade e do estágio da vida. Caso isso não ocorra, teremos mais um capítulo do distanciamento geracional: crianças e adolescentes se sentindo injustiçados, e adultos viciados mantendo atitudes. Terminar o ensino médio passará a ser, a partir da simples proibição escolar, um ato de libertação (“Pronto, agora posso utilizar o celular o quanto quiser”). Não é bem assim, e não é sobre isso. Não basta proibir, tem que conscientizar. Não resta punir os escolares, o público para esse movimento é infinitamente maior.

Resumidamente, uma campanha nacional precisa ser lançada abordando os males do uso excessivo do celular na vida das pessoas em geral. E, aqui, um primeiro desafio: os limites do Estado. Parte da extrema direita odeia essa pauta, pois acredita que todos são livres para tomar as “melhores decisões”. Será? O debate não é esse, mas serve de desculpa para o fato de que foi a partir da disseminação estratégica da estupidez virtual que parcelas radicais da direita se ressignificaram no planeta. Não que a esquerda também não tenha casos desse tipo, mas, aqui, a direita nada de braçada.

Tirar o celular das mãos do aluno, assim, seria criminoso, pois retira liberdades e “evita que a família controle o Estado” — seja lá que tipo de imbecilidade isso represente para quem tem uma mínima noção do que seja família e Estado. A despeito desse limitador de naturezas política e ideológica, que já retarda qualquer debate de alto nível acerca da doença dos excessos virtuais, vamos trazer alguns pequenos exemplos a respeito da dimensão do desafio que se coloca.

Você anda de ônibus urbano? Eu ando, quase todos os dias. Não me lembro a última viagem que fiz — e propositadamente evito ao máximo tirar o celular do bolso por razões sociológicas de percepção comportamental — que não visse o cobrador (em algumas cidades, conhecido também como trocador) enfiado na tela do próprio celular. Não estou nem falando da maioria dos passageiros que se dedicam às telas, o que é uma opção de cada um, mas do profissional que está trabalhando. 

Você anda pelas ruas? Eu ando bastante pelas avenidas Paulista e Faria Lima, onde se concentram meus compromissos profissionais na cidade em que vivo, São Paulo. Não me lembro a última vez que vi policiais militares parados em pontos estratégicos que não estivessem vidrados nos celulares.

Você convive com professores? Eu faço isso diariamente. Não me recordo de uma reunião desses profissionais em que os reclamantes dos abusos virtuais cometidos pelos alunos não estivessem olhando para o próprio aparelho — e eu, infelizmente, viciado nesse negócio, sou (por vezes) um deles.

Desastres de trânsito aumentam pelo excesso de celular ao volante. Pais são desenhados pelos filhos com retângulos no lugar dos olhos, indicando que não prestam mais atenção nos pequenos, preferindo os smartphones. Essas mesmas crianças recebem o aparelho como venerado prêmio, sem saberem que os pais querem entretê-los para se livrarem de um compromisso mais próximo e lúdico. Isso mesmo. Quem é pai ou mãe sabe: oferte o celular e jante em paz. É isso mesmo? Em muitos casos, sim.

Não vou terminar este texto me atendo longamente ao complexo papel dos celulares na política representativa formal. Também não vou falar do quanto partidos perderam força para representantes que se elegem apenas pelas redes sociais, basta olhar para o caráter absurdamente individualista desses atores em órgãos plurais como o Legislativo. A foto do plenário da Câmara dos Deputados, no dia da aprovação da Reforma da Previdência, em 2019, é emblemática. Conte quantas telas estavam acesas e voltadas para o placar. 

É só na escola que precisamos debater tudo isso? Você acredita que proibir a criança nesse espaço, apenas a partir de tal gesto, vai resultar em adultos mais conscientes? Os profissionais da educação estão preparados para essa mudança? As famílias estão prontas para esse choque? E aqui nem estou me referindo a quanto alguns pais acessam suas crias durantes as aulas para, em crises de ansiedade generalizada, perguntarem se está tudo bem. Isso seria fácil de contornar. Bastaria dar o telefone da escola, como era no meu tempo de moleque: “Meu filho está aí? Está tudo bem?”. Pronto. Em tese, passou.

E aqui me recuso abordar a doença de as famílias sonharem em controlar escolas a partir de contatos virtuais com suas crianças, porém volto a dizer: controlar o uso de celulares nas escolas é fundamental. No entanto, só nas escolas, sem uma conscientização nacional, será mais um mero milagre de estimação.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.