Lúcio Cardoso (1912–1968) é daqueles escritores brasileiros ainda pouco conhecidos, infelizmente. Mineiro de Curvelo, nascido numa autêntica família tradicional daquele Estado, religiosa e conservadora — fato esse que seria um complicador em toda a sua vida: era homossexual e católico. Como conciliar tal questão?
Autor de uma obra realmente única e totalmente voltada para as questões filosóficas e existencialistas, embora tenha publicado, ao longo do chamado Regionalismo de 30, não se enveredou pelas temáticas sociais próprias desse momento da nossa literatura. Ao contrário, a sua obra — romances, contos, teatro, cinema e diário — foi inteiramente voltada para a análise do eu, do íntimo e do estar no mundo, aliando-se a autores da mesma tendência criativa: Octávio de Faria, Cornélio Penna, Augusto Frederico Schmidt, entre outros.
A sua obra-prima, Crônica da casa assassinada, foi publicada em 1959, poucos anos antes dos dois AVCs que o marcariam profundamente, levando-a à morte após anos de sofrimento. A Crônica, que abusou de gêneros como cartas, diários e memórias, é considerada por muitos críticos como o mais importante romance da nossa literatura. Nela, Lúcio Cardoso criou um enredo em torno de uma família decadente do interior mineiro, os Menezes, que seria metáfora e metonímia do Brasil atrasado e retrógrado. Uma personagem se destaca no livro, Timóteo, que passa toda a história travestido, usando roupas, jóias e objetos pessoais da mãe. Ele é dócil, afeminado e humano, certamente o de melhor caráter dentre os irmãos: “Naturalmente ainda conservava seu aspecto feminino, mas de há muito deixara de ser a grande dama, magnífica e soberana. Era um rebotalho humano, decrépito […] e que já atingira esse grau extremo em que as semelhanças animais se sobrepõem às humanas”.
Trata-se de uma espécie de “vingança” contra a terra natal e o conservadorismo mineiro, conforme o próprio vociferou, numa entrevista ao Jornal do Brasil, em 25 de novembro de 1960: “Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais”.
Na verdade, Lúcio Cardoso foi político sem ser partidário, sem levantar bandeiras identitárias, tão comuns nos dias de hoje. Não se identificava com as ideologias comunistas, tão comuns e sempre defendidas pela maioria dos escritores brasileiros do seu tempo. Inclusive, despertou a aversão destes, foi isolado dentro do seu pequeno “grupo de resistência”, como costumava dizer. Foi ignorado por muitas editoras que o acusavam de reacionário e ultrapassado e ainda pior: que não vendia bem, que dava prejuízos editoriais etc.
Lúcio Cardoso ainda é pouco conhecido no Brasil, e tal fato é um sintoma do nosso desinteresse pela leitura e pela nossa tão rica literatura. As gerações atuais não o leem, com exceção de pesquisadores, professores e alguns alunos. É considerado um “autor difícil”. Ora, a literatura é uma arte complexa que provoca rupturas e mudanças no leitor, ou seja, ler é mexer com as funduras da alma, pois o texto literário provoca uma tensão interna, rompe com as certezas do leitor, transforma teses em hipóteses. É esse, a meu ver, o que a obra de Lúcio Cardoso desperta e estimula, tirando-nos da zona de conforto e produzindo aquela espécie de dor necessária à nossa existência, a saber: a recepção tensa de um novo olhar sobre a vida.
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