Artigo

Marçal e o bolsonarismo 2.0

Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Helga Almeida
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Era 7 de janeiro de 2022 quando o Corpo de Bombeiros realizava uma grande operação de resgate no Pico dos Marins, na Serra da Mantiqueira, em Piquete, município paulista. A operação, que começou às 4h30 com a busca de 32 pessoas, só conseguiu resgatar o grupo após nove horas de trabalho, em razão das péssimas condições climáticas, com ventos de quase 100 quilômetros por hora, chuva intensa e temperatura chegando a 0ºC à noite.

Liderando essa expedição estava o coach Pablo Marçal, que, após a aventura, escreveu ironicamente no Instagram que “só os irresponsáveis chegam ao topo”, exaltando aqueles que “venceram seus medos” e quase perderam a vida na missão em que supostamente “destravariam códigos de prosperidade e do governo da alma”. No mesmo ano, Marçal, então filiado ao Partido Republicano da Ordem Social (Pros), lançou pré-candidatura à Presidência do Brasil. No entanto, em decorrêncida do apoio do partido a Lula, decidiu candidatar-se a deputado federal por São Paulo. Obteve 243.049 votos, mas acabou não assumindo uma cadeira na Câmara porque teve a candidatura impugnada por problemas com documentos. Isso, porém, não o fez desistir da sua meteórica carreira política e, em 2024, candidatou-se à Prefeitura de São Paulo, a maior cidade da América Latina, agora pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) — contudo, não avançou ao segundo turno, por uma diferença de apenas 56.854 votos. 

Mas como surgiu Pablo Marçal? Quem é ele? Como vive? Como se alimenta? Algumas explicações para o sucesso do coach moram na sua retórica convincente, repleta de meritocracia e conservadorismo. Um discurso que se encaixa bem em tempos de capitalismo predatório e neoliberalismo extremo. É aí que alguém que afirma ter saído da pobreza e, com “muito esforço próprio”, disputou a prefeitura em 2024 como o candidato com o maior patrimônio declarado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — R$ 193,5 milhões — e sócio de 21 empresas, consegue atrair seguidores nas redes sociais, eleitores e compradores para seus cursos e livros que prometem “transformar a vida”, “destravar a inteligência emocional” e “desbloquear as ilhas neuronais” e “a arte de negociar”. Mesmo condenado a quatro anos e cinco meses de reclusão por furto qualificado (desvio de dinheiro de contas), Marçal não parece ter a reputação abalada pelo fato, alegando sempre ser vítima de perseguição. 

Outros episódios igualmente estranhos fazem parte da biografia de Marçal, como o projeto em que supostamente arrecadou R$ 4,5 milhões em doações para construir 300 casas na comunidade rural de Camizungo, em Angola. Após investigações do Intercept Brasil, descobriram-se indícios de que apenas 30 casas foram de fato construídas. No que diz respeito às redes sociais, Marçal demonstrou grande habilidade. Antes de ter as mídias suspensas pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) por causa da divulgação de fatos inverídicos durante a campanha eleitoral, ele contava com quase 13 milhões de seguidores no Instagram. Além disso, criou um “campeonato de cortes” que mobilizava mais de 4 mil pessoas em uma comunidade onde os melhores vídeos eram remunerados com até R$ 5 mil, prática bastante problemática, já que pagar por engajamento em postagens pode ser interpretado como abuso de poder econômico.

Sobre a linguagem do candidato derrotado, é o “mais do mesmo”; a diferença foi a escala de incivilidade que colocou para jogo. Letícia Cesarino, no trabalho Como vencer uma eleição sem sair de casa: A Ascensão do populismo digital no Brasil (2020), chama a atenção para alguns achados que constatou em análise de grupos de WhatsApp bolsonaristas na campanha de 2018. Foram constatados discursos que se utilizavam da: 1) inserção de uma fronteira antagonística amigo-inimigo; 2) equivalência líder-povo; 3) mobilização permanente pela ameaça e pela crise; 4) espelhamento do inimigo e inversão de acusações; e 5) produção de canais midiáticos exclusivos. Assim se criou um mecanismo populista que era posto em ação. Segundo Letícia, o líder carismático, “paladino da ruptura e da mudança”, constrói-se como líder ao criar uma identidade política comum para o seu “povo”, usando apelos emotivos, estéticos e morais que podem ser positivos (como esperança e desejo de justiça) ou negativos (como ódio ao inimigo e ressentimento).

Marçal conseguiu encarnar as características bolsonaristas com uma pitada a mais de indecorosidade. Na verdade, a sua consolidação como um líder daqueles “à margem do sistema” veio acontecendo desde que se transformou em coach de desenvolvimento pessoal e empresarial, em 2010. Além disso, um certo messianismo misturado com uma oratória próxima à usada em cultos de igrejas evangélicas fez com que seu discurso cativasse, chegando o candidato derrotado a dizer que já havia orado na tentativa de ressuscitar mortos em um velório. Inclusive, a sua naturalidade em utilizar muitos dos argumentos da teologia da prosperidade geraram a ira do alto escalão de igrejas, como Silas Malafaia.

E foram nas eleições que Marçal criou aqueles inimigos a serem combatidos, mobilizando a própria base com falas ofensivas contra adversários na disputa pela prefeitura paulistana. Acusou Guilherme Boulos (PT) de ser usuário de drogas, afirmou que Tabata Amaral (PSB) era culpada pelo suicídio do pai dela e chamou Datena (PSDB) de estuprador. Em meio a isso tudo, apresentava-se como o grande líder da extrema direita, alegando ter contato até com Donald Trump. Chegou a postar uma carta em que uma suposta assessora do presidente eleito dos Estados Unidos lamentava por Marçal ter levado uma cadeirada — o que foi desmentido pela equipe de Trump.

O candidato derrotado dividiu a extrema direita paulista ao desafiar o candidato oficial de Bolsonaro, Ricardo Nunes, e captar muitos de seus votos no primeiro turno. Esse movimento causou mal-estar entre os seguidores de Bolsonaro, que cobraram do ex-presidente apoio a Marçal, visto como um político mais alinhado esteticamente com Bolsonaro — e perigosamente capaz de construir um “bolsonarismo 2.0” para os próximos anos.

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