O Museu de Arte de São Paulo (Masp) exibiu, no primeiro semestre deste ano, a exposição Mário de Andrade: duas vidas, sob a curadoria de Regina Teixeira de Barros, a qual fez parte da programação anual do museu dedicada às histórias da diversidade LGBTQIA+. No catálogo, lê-se: “A exposição é a primeira dedicada a analisar a coleção de Mário a partir de uma perspectiva queer”. Fui ver e confesso que não gostei.
A homossexualidade do autor de Macunaíma me parece já ser consenso entre biógrafos, fato que ainda desperta rumores e curiosidades que me trazem certa perplexidade, afinal, era a sua vida pessoal. Tenho visto, nos últimos anos, uma constante tentativa de “provar” e “demonstrar” a orientação sexual do autor a partir de elementos da sua obra. Nada mais absurdo, já que Mário nunca militou em frentes identitárias, algo inexistente no seu tempo, tampouco representou a temática na sua escrita artística.
A exposição que ora analisamos tentou esse intuito por meio de alguns elementos da coleção de arte pertencente ao escritor, o que também avaliei como uma estratégia totalmente inadequada. Pergunto-me o que haveria de sugestão queer em peças como Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret? Ou nas gravuras Cristo e Cristo flagelado, de Joaquim Iokanaan? E, para piorar, o que haveria de tão singular nas imagens de Jesus, em madeira policromada, que pudesse associar e/ou confirmar a homossexualidade de Mário de Andrade? Nessa mesma perspectiva, estão os diferentes retratos, a óleo, executados por Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Lasar Segall e Anita Malfatti — a curadoria propõe uma sensibilidade queer nessas obras. Já eu, enquanto leitor atento e pesquisador interessado da obra de Mário, sinceramente, não consigo enxergar esse direcionamento.
Sob essa mesma perspectiva, assustei-me com esse mesmo tipo de associação/estratégia classificatória — em relação a Mário — a partir de inúmeras fotografias de trabalhadores, especialmente imagens produzidas durante viagem do autor ao Norte e ao Nordeste do Brasil. Ora, funções como estivador, carregador, marinheiro, vaqueiro, barbeiro, boiadeiro, pescador, barqueiro, mateiro e tantas outras pertenciam exclusivamente ao universo masculino. Ao fotografá-las, na minha opinião, o objetivo de Mário recaiu mais no seu interesse de pesquisador e etnólogo do que, propriamente, numa suposta atração homoerótica. Parece que fazer essa associação de valores “forçou a barra” ao usar o filtro das pautas identitárias de hoje em dia, mas que não existia na época e no mundo do polígrafo paulista.
A exposição contou com forte pesquisa por parte da equipe curatorial, isso é fato inegável; bem como percebemos uma grande colaboração do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), centro multidisciplinar que salvaguarda o acervo do escritor, no sentido de possibilitar o acesso aos itens dessa coleção. Ressalto esses pontos positivos.
Que o Brasil é um país historicamente injusto, disso não duvidamos, e acho mesmo que somente com muita luta e conscientização poderemos conquistar um mínimo de cidadania. Todavia, nos últimos anos, tem havido uma imensa confusão entre pesquisa e questões identitárias, entre militância político-social e produção de conhecimento, entre documentação e comprovação de determinadas ideias. Creio que essa lógica permeou a montagem da exposição Mário de Andrade: duas vidas, o que, na minha avaliação, não contribui para um maior conhecimento da obra de Mário de Andrade — apenas pode despertar uma curiosidade momentânea e superficial.
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