Artigo

Não é sobre o aborto, é sobre a Justiça

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Se questionamos a prática legal do aborto em casos de estupro, é porque ainda existe a barbárie alucinante do sexo não consentido entre nós. Isso não representa qualquer novidade; espraia-se pela sociedade e começa dentro de casa, com meninas iniciadas sexualmente pela família. Falo do Brasil, que, de forma hipócrita, fecha os olhos para casos dessa natureza. Trata-se da mesma sociedade que há décadas viu um político dizer “Estupra, mas não mata”. E, em tempos mais recentes, ouviu um parlamentar afirmar em ataque à colega de Câmara: “Jamais estupraria você, porque você não merece”.

É desse país que estamos falando. E do mais bárbaro crime sexual que pode existir. As leis não o tratam desse modo. E para reescrever a legislação utilizando o modus operandi como alguns “profissionais de saúde e da Justiça” têm tratado mulheres estupradas que buscam o legítimo direito ao aborto, sendo obrigadas a ouvir o coração do feto, só mesmo sugerindo que parlamentares assistam centenas de vezes a cenas de estupros masculinos. Desafio um “macho”, que não precisará fazer um aborto, a aguentar firme na cadeira. É tenebroso, mas precisa ser na carne para que compreendam tamanha tortura?

O aborto não é tema fácil, assim como o estupro só foi compreendido legalmente como crime, de forma evidente, entre meados dos séculos 19 e 20. Demorou. Sobre o assunto citado no começo do parágrafo, as discussões são complexas e atreladas a aspectos culturais, bem como atravessam debates a respeito do início da vida, das liberdades individuais e do papel do Estado na nossa realidade — para nos proteger e assegurar direitos sob percepções distintas. Aqui está o maior de todos os desafios.

O debate sobre esse tema, no Brasil, é envelhecido, e diante de um Congresso conservador, ninguém pensa em ampliações, mas em preservação das garantias atuais. Em 2010, o tópico veio à tona na campanha presidencial, com o pragmatismo das pesquisas emprestando à ganância por votos uma postura conservadora. No entanto, antes disso, nos anos 1980, tivemos emendas populares ao anteprojeto da Constituição de 1988 que falavam do assunto: uma contra e outra favorável. O documento final se calou, ou seja, não é a Constituição que regula a prática, mas códigos e entendimentos do ativista Supremo Tribunal Federal (STF).

Em termos teóricos, quem defende o aborto parte da liberdade de escolha sobre o próprio corpo, com um ponto: mulher alguma sonha em abortar. O trauma proporcionado por tal atitude poder ser avassalador e deixar marcas irreparáveis. Além disso, existem os fatores adicionais do cotidiano: por ser proibida, a ação se torna clandestina e mata sem dó, vitimando muito mais a população pobre — que apela para soluções que trafegam entre crendice, tolice e falta de recursos — do que as parcelas abastadas, que recorrem à prática em locais seguros. Mas aqui temos um adicional: estamos discutindo, hoje, o aborto associado ao estupro, em que a mulher não teve escolha alguma. Ela é sequestrada pela insanidade do criminoso e selecionada pelo ímpeto medieval de um projeto de lei bizarro. As desigualdades de gênero e socioeconômica mostram a sua fúria.

Também em termos teóricos, quem é contrário ao aborto afirma que um feto já é um ser humano a partir de horas, dias ou semanas de vida. Cálculos não faltam para aferir quando a “vida começa”, além de “toda vida deve ser preservada” — e é curioso como parte dos defensores dessa tese adere facilmente ao bordão “bandido bom é bandido morto”. Nesse universo, o que está em jogo é menos a liberdade da mulher e mais o direito do feto, que passa a fazer da mãe um agente gerador, em função incapaz de responder pelas complexidades do século 21. Nesse sentido, os defensores da proibição ao aborto fariam de toda mulher grávida uma assassina em potencial, afinal, a ela não cabe outra coisa que não seja garantir o nascimento do feto, a despeito de a vida ter sido gerada num crime brutal.

O ponto central do atual debate está aqui. O estupro deixaria de ser condição para o Estado atuar sobre a vontade da mãe, algo definido nos anos 1940, ou seja, há quase um século. Estamos novamente diante de “trauma trazido por uma atitude avassaladora, que deixa marcas irreparáveis”. Contudo, vamos além: a lei pune mal o estupro. Tanto é verdade que a cultura se mostra mais cruel com esse tipo de criminoso. Existem códigos sociais de linchamento para tais sujeitos, e estupros de estupradores são padronizados nos presídios, resultando em pena de morte. Assassinar estuprador é prática social, que contraria a lei, mas é. E não estamos aqui defendendo que isso seja praticado.

Note: o tema é complexo. E o que se deseja atualmente é proibir a possibilidade de escolha pelo aborto em casos de estupro, representando um completo abandono do Estado à mulher vítima de um crime. Se socialmente o estuprador paga com a vida perante a sociedade enfurecida, e é pouco punido pelo Estado, o que se pretende agora é elevar a chance de a vítima morrer na clandestinidade e ser condenada a mais anos de cadeia que o próprio criminoso, se este sobreviver. Não há lógica em tamanha estupidez. Só há ausência do Estado em todos os sentidos. Lugar de estuprador é na cadeia, condenado, julgado e vivo. Lugar de mulher estuprada é onde o Estado a acolha com humanidade, dignidade e oferta de escolhas legais levadas adiante na letra da lei.

Como contrapartida à péssima repercussão do projeto, cujo regime de urgência na Câmara foi aprovado em segundos, protagonizado pelo oportunismo de Arthur Lira, os parlamentares favoráveis à aberração recuaram. Não aprenderam nada em termos de lucidez. Apenas voltaram às trevas, com promessa de retorno. E aqui o debate pode piorar: a justificativa de alguns apoiadores do projeto é que mulheres grávidas procuram o Estado se dizendo estupradas para que o aborto seja, oficialmente, acobertado — um absurdo que subestima a inteligência do Estado e transforma exceção em regra a punir todas as vítimas. Por outro lado, quem procura o Estado, depois do trauma de um estupro e diante de novo processo complexo associado ao aborto legal, não tem o tratamento humanizado que a saúde afirma ofertar. Há relatos de chantagens emocionais de toda ordem contra a decisão dessas vítimas nos órgãos de saúde, de assistência e de Justiça. Faz sentido aumentar a intensidade do sofrimento? Cabe a um agente público tamanha tortura psicológica diante da decisão tomada no universo mais íntimo e ancorada pela lei? Aqui o último ponto: tudo isso é realizado em semanas, dias. A mulher é estuprada, descobre que está grávida, toma a decisão de acordo com a lei, procura a Justiça, vai ao SUS e passa pelo procedimento. E no Estado, o que ela encontra? Acolhimento ou constrangimento? Respeito ou linchamento social? Este texto não é sobre aborto, é sobre justiça. É sobre lei, e sobre a presença de um Estado laico e universal, sem juízo de valor por parte de servidores que se dizem públicos, na vida das mulheres grávidas estupradas.

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