Artigo

Negociando a virtude

José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.
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José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.

A função institucional primária de nossa Corte Suprema, o Supremo Tribunal Federal (STF), é atuar como árbitra nos litígios relacionados à alegada inconstitucionalidade de atos normativos (por exemplo, leis ordinárias ou medidas provisórias), definindo por decisão judicial se seu conteúdo é (ou não) compatível com o texto constitucional, impondo, assim, limites à atividade política. Em algumas situações, observa-se também a atuação ativista do Tribunal, quando, além de se pronunciar sobre a validade de uma norma frente à Constituição — na realização de pautas progressistas ou conservadoras —, criam-se, por atividades interpretativas, novas regras nela não existentes de forma expressa, como já ocorreu em temas relacionados à criminalização da homofobia ou à pesquisa com células-tronco embrionárias. 

Em outras situações nas quais os membros do Supremo identifiquem elevados custos decisórios, adotam sofisticadas estratégias para evitar ter que decidir sobre a constitucionalidade da norma impugnada, adotando comportamento autocontido, como aconteceu quando tiveram que se pronunciar sobre a (in)constitucionalidade do ensino domiciliar (homeschooling). Sempre haverá grupos descontentes com o resultado do julgamento sobre a constitucionalidade das leis — e, em tempos de intensa e calcificada polarização política e social, aumentam-se as chances de autorrestrição judicial. 

Surge, agora, nova forma de autorrestrição: em vez de se manifestarem sobre a suposta inconstitucionalidade, os ministros relatores determinam compulsoriamente que seja instaurada a conciliação entre os atores políticos interessados para que negociem a elaboração de uma nova norma em substituição à anterior. Há uma série de potenciais problemas envolvidos nessa conduta. Por exemplo, num litígio sobre a inconstitucionalidade de uma lei, são chamados à mesa a Presidência da República e as presidências da Câmara e do Senado para novamente deliberar acerca de assunto já decidido, com a possibilidade de surgir longos e indesejados impasses negociais, assim como negociações políticas que excluam lideranças e comissões, transformando os órgãos legislativos colegiados em meras instâncias homologatórias.

Por outro lado, sem menção a respeito da alegada inconstitucionalidade, enfraquece-se a própria revisão judicial e incentiva produção legislativa sabidamente inconstitucional, apostando em futuras soluções intermediárias. Encontram-se nesse cenário, dentre outras, a nova Lei do Marco Temporal (ADI 7582, relator ministro Gilmar Mendes), que se refere às mudanças nos critérios de distribuição dos royalties do petróleo (ADI 5621, relatora ministra Carmem Lúcia), a desoneração da folha de pagamentos (ADI 7633, relator ministro Cristiano Zanin) e o orçamento secreto (ADPF 854, relator ministro Flávio Dino). 

A despeito de existirem fundamentadas justificativas — que vão desde a defesa processual de uma justiça multiportas à teoria dos diálogos institucionais —, em concreto, vê-se uma implícita renúncia ao exercício de seu papel (a definição sobre a constitucionalidade) sem previsão constitucional para tanto. A conciliação é importante para a redução da carga processual e para a otimização dos serviços judiciários, mas se apresenta inadequada no ambiente do controle abstrato de constitucionalidade, pois utilizada silenciosamente como meio para evitar ou retardar, de forma indefinida, o pronunciamento da Corte sobre os conflitos constitucionais.   

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