Artigo

O fardo do homem branco

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Assuma o fardo do Homem Branco —
Envie o melhor que você criar —
Vá prender seus filhos ao exílio
Para servir à necessidade de seus cativos;
Para esperar em arreios pesados,
Em pessoas agitadas e selvagens —
Seus povos recém-capturados e taciturnos,
Meio diabo e meio criança. 

O poema O fardo do homem branco, escrito pelo britânico Rudyard Kipling em 1899, foi uma resposta à ocupação das Filipinas pelos Estados Unidos após a Guerra Hispano-Americana. No texto, Kipling defende que os estadunidenses tinham a missão de “civilizar” os povos locais, retratando essa ação como um dever nobre, apesar das dificuldades.

No dia 6 de janeiro de 2025, em tradicional conferência de embaixadores franceses, o presidente da França, Emmanuel Macron, acusou alguns países que fazem parte do Sahel — região ao sul do deserto do Saara, em uma faixa que atravessa o continente africano de leste a oeste e inclui partes de dez países: Burkina Faso, Mali, Níger, Camarões, Guiné, Gâmbia, Senegal, Nigéria, Chade e Mauritânia — de ingratidão ao reagir sobre o anúncio do encerramento de parcerias militares do país europeu com a África.

O presidente francês ainda declarou que os Estados do Sahel esqueceram de agradecer à França por seu papel. Além disso, afirmou que nenhuma nação saheliana seria soberana sem a intervenção da França. 

O ministro das Relações Exteriores do Chade, Abderaman Koulamallah, atestou que os comentários de Macron revelam o desprezo do europeu pela África. O primeiro-ministro do Senegal, Ousmane Sonko, por sua vez, anunciou que a França foi responsável pela desestabilização de diversos países africanos, o que teve consequências desastrosas para o continente. 

Afirmou ainda que não houve negociação com o país europeu sobre o fechamento de suas bases militares no país. A decisão decorreu da vontade única do Senegal como um país soberano. A França, destacou Sonko, não tem capacidade nem legitimidade para garantir a segurança e a soberania da África.  

A França ainda domina vários países africanos pela ocupação militar permanente; pela implantação de milícias; pelo controle dos recursos minerais, como urânio e ouro; e pela imposição da moeda franco CFA, impressa e controlada pelo Banco Central da França, não permitindo a existência de uma moeda local própria. 

Contudo, levantes militares e civis em Mali (2020 e 2021), Burkina Faso (2022) e Níger (2023) expulsaram as tropas francesas desses países e retomaram o controle dos recursos naturais, encerrando acordos econômicos abusivos. No fim de 2024, os governos de Chade e Senegal também anunciaram a retirada dos militares franceses.

A nação europeia reagiu com a imposição de sanções econômicas e o isolamento diplomático dos países africanos considerados “rebeldes”. Sob acusações de neocolonialismo, a França vem diminuindo a influência na região. 

Os governos liderados por juntas militares em Níger, Mali e Burkina Faso se aproximaram da Rússia após a retirada francesa de seus países. Em discurso durante a cúpula Rússia–África em São Petersburgo, em 2023, Putin prometeu manter o fornecimento estável de grãos e outros produtos agrícolas para o continente. 

A propaganda russa encontrou terreno fértil na África em meio a décadas de insatisfação com as intervenções militar e diplomática de países como França, Reino Unido e Estados Unidos. Vários ressentimentos catalisados quanto aos antigos colonizadores acompanham uma nostalgia em relação aos governos militares e têm sido estimulados pelo cansaço da forma como as elites políticas distribuem os recursos políticos e sociais entre a população. 

Segundo Tatiana Smirnova, pesquisadora na Universidade de Quebec em Montreal e especialista em política do Sahel, há um encontro entre essas duas tendências e o governo Putin incorpora e utiliza dessas predisposições para promover ainda mais um discurso anti-Ocidente e expansionista no continente africano. 

Há dois anos, os franceses se colocavam em uma posição pouco interessada no conflito russo-ucraniano, uma vez que a França produz 65% de sua energia por meio de centrais nucleares. No entanto, essa posição mudou a partir do apoio russo à independência do Níger, pois este é um país que possui imensas quantidades de urânio, matéria-prima fundamental para o funcionamento das instalações nucleares francesas. 

Em razão disso a indiferença do país francês com a guerra na Ucrânia, definitivamente, terminou. Na semana passada, diante da mudança tática de Trump sobre a Ucrânia, Macron colocou à disposição de seus aliados europeus o arsenal nuclear como força de dissuasão, afirmando que Putin é um imperialista revisionista que representa uma ameaça existencial duradoura para todos os europeus.  

A região de Sahel, na África, é, talvez, uma das mais ricas do mundo, dotada de vastos recursos energéticos e minerais, como petróleo, ouro e urânio, mas o seu povo continua vivendo na extrema pobreza, na fome e em conflitos civis e militares — e parece que toda essa riqueza ainda não é suficiente para pagar a “dívida civilizatória” e agradecer o “fardo dos homens brancos”. 

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