Artigo

O ‘novo jornalismo’ e a política

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Com o advento das tecnologias virtuais das últimas poucas décadas, o jornalismo é uma das áreas profissionais que mais precisou, e ainda precisará, se reinventar. Sou de um tempo em que dávamos entrevistas por telefone, ou pessoalmente (quando fotos eram necessárias), e ficávamos muito tempo em conversas complexas repletas de alternativas, análises e cenários. Jornalistas das antigas, respeitados, traziam sempre perguntas interessantes e desafiadoras. Nitidamente, conheciam bem o que estavam observando e nos ensinavam muito. No dia seguinte, ou no instante combinado para a publicação, a ansiedade fazia acordar cedo. Muitas vezes, corri para a banca para comprar um jornal que não assinava para ver o que tinha saído de tudo aquilo que havia sido conversado.

A frustração de muitos acadêmicos, aqui, costumava ser a mesma: falávamos, por vezes, por poucas horas, e apenas algumas aspas curtas eram divulgadas. Paciência. Quem não entende isso na história, que deixe de dar entrevista. Mas em relação a essa situação, muita coisa mudou no jornalismo — e para pior. O primeiro ponto é: profissionais cada dia mais juniores e despreparados para a compreensão da política. Assim, a ansiedade das entrevistas se desloca do interesse em saber o que “foi publicado” para a ideia do “vamos ver o que a pessoa que me ouviu entendeu do que eu disse”. Perceba que as coisas são bem diferentes (e preocupantes). Arrogância à parte, anda difícil conversar com agentes apressados e, por vezes, exageradamente convictos, que pouco entendem o que têm sob responsabilidade. Contudo, isso é menos culpa dos profissionais e mais o resultado de algo maior — o próprio jeito de o jornalismo, sobretudo o político, com o qual me relaciono mais, ser feito. Esse é deprimente, e dois fenômenos aqui se destacam.

O primeiro: falta gente e sobra ambiente para publicação. Eis o pior de todos os fenômenos. Vou me utilizar de um espaço físico que conheço bem por tê-lo frequentado, mas isso transcende o exemplo. O jornal O Estado de S. Paulo contava com uma redação gigantesca no sexto andar de seu tradicional prédio do Limão, bairro da zona norte de São Paulo. Centenas de profissionais dividiam aquele espaço. E faz algumas poucas décadas que o local existente para publicação estava restrito a algumas páginas impressas em edições diárias. Assim, com base no fechamento do fim da tarde, pense no espaço temporal que um profissional, ou as equipes jornalísticas, tinham para apurar e fechar uma matéria. Em relação a hoje, sobrava tempo, abundavam jornalistas e faltava espaço para imprimir. Pensou?

Essas estruturas se tornaram insustentáveis do ponto de vista econômico. Não cabe mais ter centenas de jornalistas para algumas poucas páginas a rodar nas prensas. Assim, diante do advento das notícias em universo virtual, os limites de páginas se esgotaram. Qual o volume ideal de postagens de notícias num portal jornalístico na internet? Duvido que a resposta seja única, e estratégias aqui se multiplicam. Mas completemos a pergunta. Quantos jornalistas são necessários para que, a exemplo de um bom jornal antigo, um portal seja confiável, técnico, interessante e muito bom? Em tese, algo muito maior que no passado. No entanto, se o dinheiro anda escasso, e a concorrência insana, a tese passa a léguas da realidade: redações foram drasticamente reduzidas, e os níveis de apuração, aprofundamento e capacidade técnica se esfarelaram. O jornalismo acabou. 

Calma! Não é exatamente isso, mas está deprimente. E vamos, ainda, ao segundo ponto. Frente a esse primeiro desafio complexo, o que será que temos noticiado hoje? Pois é. Preste muita atenção na quantidade imensa de matérias postadas no universo virtual que dizem em chamadas ou títulos: “ [Pessoa candidata a ser minimamente importante] afirma que…”. Abra. Clique no link. Leia. Notou do que se trata? Um post isolado nas redes sociais sobre qualquer assunto virou matéria. O jornalista leu aquilo e escreveu algo do tipo: “Na tarde deste sábado, o deputado fulano afirmou em suas redes sociais que…”. Nada mais do que isso. Sem contraponto, sem comentários de especialistas, sem análises. NADA. Absolutamente nada. Parte do jornalismo político se transformou em mero reprodutor literal de idiotices que o universo virtual oportunizou. O debate — este, sim — acabou, até porque temos preguiça para ler e entender. Queremos notícias que nos confortem o cérebro, avesso a lados diferentes dos fatos.

Assim, se antigamente as assessorias de comunicação dos políticos se desdobravam em torno da geração de interesse jornalístico pelo que seus clientes produziam, hoje, basta lançar milhões de idiotices no espaço virtual e torcer para que alguma renda mais do que as próprias redes dos políticos já conseguem impactar. O jornalismo perdeu o controle das pautas, tornando-se mero reprodutor da liberdade quase insana que as redes deram aos usuários. Bom? Ruim? Depende. Interpretações e visões sobre o fenômeno não faltam, mas chamar isso tudo de jornalismo é quase ironia. Jornalista político virou protótipo de estagiário do setor de fofocas, ou mero reprodutor de postagens — o que significa que viraram frequentadores de redes sociais.

Segundo analistas e especialistas em diversos temas, a situação também piorou. Somos cada dia mais acessados por um conjunto mais amplo de meios que mal conhecemos. Tudo bem, temos aqui uma liberdade ampliada. Mas o que será feito daquilo que dissemos? A ansiedade de saber algo a respeito do bom aproveitamento dos nossos conteúdos ganhou contornos de exacerbação, dado que nem sequer sabemos para onde falamos. Solução: paremos de falar — o que particularmente fiz no último ano. Se, até 2022, eu dava em torno de cem entrevistas por ano, em 2024, não quero chegar a 20. Parei. E a razão para isso é adicionada pelo fato de que a pressa e o ritmo do jornalismo atual converteram a profissão em algo ainda mais estranho. 

Palavra de quem há pouco tempo viveu uma experiência bem interessante. Nada de ligar, marcar entrevista e pedir um bate-papo. A realidade mais recente funciona assim: manda-se uma mensagem de WhatsApp para diversas fontes pedindo declarações acerca de um tema, com a afirmação de que a resposta pode seguir por áudio ou escrita — obviamente, quando a rara matéria demandar comentários ou análises, ou seja, não estiver apenas reproduzindo posicionamento unilateral de alguém nas redes sociais. Mas veja que interessante. Estava eu num bar com dois amigos dia desses, e os três celulares alertaram para nova mensagem ao mesmo tempo. O movimento de todos se curvarem em direção às telas foi automático. Em comum, um mesmo jornalista pedia comentário sobre um fato, com o texto igual, para o trio. Rimos. Mandamos uma foto nossa brindando com cerveja. Eu, pessoalmente, bloqueei o sujeito, com a certeza de que alguém considerará um pedido desses muito normal na década de 20 do século 21 e responderá, reinaugurando e reforçando esse “novo jornalismo”. Paciência.

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