Nas últimas semanas, o mundo viu a morte de uma Papa e a eleição de um novo pontífice para a Igreja Católica. Os olhos do planeta dirigiram-se para Roma, a Cidade Eterna, a terra dos papas, imperadores, santos, ditadores e tantas outras figuras do maior significado histórico. E… Habemus Papam! Robert Francis Prevost foi eleito e escolheu o nome de Leão XIV, fazendo memória e prestando homenagem a Leão XIII, o Papa da transição entre os séculos 19 e 20, aquele que foi sensível aos grandes problemas sociais do seu tempo. Entretanto, minha reflexão aqui recai sobre a origem religiosa do novo Papa, pois ele é agostiniano, ou seja, pertence à Ordem de Santo Agostinho. Mas o que isso importa a esta coluna, que discute literatura e estudos literários? Muita coisa, eu garanto.
Natural do fim da Antiguidade, nascido no ano 354 da Era Cristã, Agostinho de Hipona continua sendo um dos maiores pensadores ocidentais de todos os tempos, com trabalhos ainda lidos e necessários nos diversos campos do pensamento humano, com destaque para a filosofia, a teologia, a gramática, a retórica, a hagiografia, a pedagogia, entre outros. Foi uma vocação convertida, já que a sua adesão ao cristianismo se deu na vida adulta, quando recebeu o batismo pelas mãos de Santo Ambrósio, marcando a sua radical conversão e início da vida pastoral e ministerial — e de importante pensador católico.
Foi um exímio leitor e conhecedor da filosofia clássica greco-latina, com especial predileção pelos gregos, tendo traduzido vários desses clássicos, especialmente Platão. A sua obra é vasta, pois chegaram até nós mais de 50 escritos de alto valor, que transcendem o tempo e as gerações. Acredita-se que muita coisa também se perdeu, pois conhecemos a fragilidade da manutenção e a extensão dos textos na Antiguidade.
Para alguns especialistas, Santo Agostinho escreveu sobre “um pouco de tudo”, isto é, teceu estudos acerca da exegese de textos bíblicos, tratados filosóficos e teológicos, além das vidas dos primeiros santos cristãos (hagiografias) e de questões linguísticas e gramaticais, gêneros literários, astronomia, lógica matemática, educação (tratados pedagógicos) etc. E também escreveu muitas cartas, pois foi um praticante do gênero epistolar, algo comum à época, quando grande parte do pensamento e das explorações intelectuais aflorava na correspondência trocada e arquivada entre remetentes e destinatários.
Dentre os diversos livros de Santo Agostinho, gostaria de destacar aquele que, pessoalmente, considero uma obra-prima e que marcou muito a minha carreira e a minha vida de estudos: Confissões. Escrita entre os anos 397 e 400, é considerada por numerosos especialistas como a primeira autobiografia do Ocidente. De fato, nessa obra, Agostinho fornece preciosas informações sobre a sua vida, com destaque para a juventude pagã, os vícios, as mazelas imorais e pecaminosas, o sofrimento da mãe — Santa Mônica — e o imenso divisor da sua história pessoal: a sua conversão religiosa, cuja dinâmica muito se deveu ao primeiro mestre, Santo Ambrósio. Tudo narrado na primeira pessoa do singular, com expressão clara dos próprios sentimentos, buscando sempre uma reflexão pessoal e também religiosa, bem como sobre o mistério da sua adesão à fé cristã. O tom confessional de sua autobiografia influenciou inúmeros escritores e pensadores ao longo do tempo, com um especial destaque para o filósofo Jean-Jacques Rousseau, que nunca escondeu a influência agostiniana nas suas Confissões, publicadas em 1782.
Toda essa tradição, que vem desde o tempo da antiga patrística ocidental, chega aos dias de hoje, com a eleição do Papa Leão XIV — membro da Ordem de Santo Agostinho, fundada na região da Toscana, na Itália, em 1244 —, buscando salvaguardar a inspiração e a tradição intelectual do bispo de Hipona. Por essas razões, esta coluna não poderia ignorar esse grande acontecimento — a eleição do novo Papa —, pois, sem considerar o credo religioso de cada um, ele é enriquecido por imensos valores simbólico, tradicional e, também, cultural.
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