Artigo

O presidencialismo de coalizão não colapsou

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

No artigo que publiquei aqui, em agosto do ano passado, abordei como diversas personalidades públicas chegaram à conclusão de que o presidencialismo de coalizão colapsou. Opondo-me a tal diagnóstico, concluí a discussão com uma conjectura: na verdade, esse modelo de interação entre Executivo e Legislativo ainda é a estratégia dominante no processo de governo. 

No entanto, o seu eixo de comando sofreu uma modificação estrutural de 2015 a 2022, quando deixou de ser um quase monopólio do presidente da República para ser dividido com o presidente da Câmara dos Deputados — o poder orçamentário está no centro desse rearranjo institucional e de tudo o que lhe corresponde no manejo da coalizão. Por fim, mencionei que desenvolveria um pouco mais os fundamentos dessa hipótese, para o dizer de algum modo, num artigo posterior. Aí lhes vai! 

O atual desenho constitucional investiu a Presidência da República de três poderes institucionais indispensáveis para formar e manter coalizões partidárias coesas: (1) poderes legislativos, que incluem prerrogativas constitucionais como a iniciativa de leis e medidas provisórias; (2) poderes fisiológicos, que abrangem a distribuição de cargos e o acesso à máquina pública; e (3) poderes orçamentários, concernentes à elaboração da peça orçamentária e ao controle da liberação de recursos, inclusive (e notadamente) as emendas parlamentares. Como já discutido pela literatura especializada, esses três pilares do arcabouço institucional deram sustentabilidade ao chamado presidencialismo de coalizão

Contudo, a partir de 2015, esse modelo de governação sofreu uma reconfiguração substancial. A Emenda Constitucional (EC) 86/2015, que tornou impositiva a execução de parte das emendas parlamentares individuais, e a ascensão de lideranças proativas e hábeis no uso estratégico do regime interno da Casa marcaram o ponto de viragem na divisão do poder orçamentário, conferindo mais autonomia ao Legislativo — de fato, a ascensão do chamado “orçamento secreto” (emendas de relator, RP9), entre 2019 e 2022, foi um dos episódios culminantes desse processo. Desde então, os parlamentares da coalizão de governo se viram fortalecidos para demandar mais e mais concessões do Executivo sem, contudo, comprometerem-se com a contrapartida de apoiar os projetos do presidente com a devida consistência partidária.

Como sabemos, há muito tempo os parlamentares demandavam mais autonomia para alocar recursos orçamentários, essencial às próprias carreiras políticas. Dado que o sistema eleitoral faculta ao eleitor a possibilidade de votar em candidatos individualmente, a competição pelas vagas legislativas também é acirrada entre os concorrentes do mesmo partido. Assim, os candidatos precisam se diferenciar não apenas dos adversários dos demais partidos, mas também dos próprios correligionários. Nessa lógica, alocar recursos públicos para as suas bases eleitorais, sobretudo via emendas parlamentares, torna-se essencial para a construção de reputação política, central para aumentar a sua competitividade eleitoral.

Para ser efetivo, esse mecanismo de diferenciação depende da atribuição pública de crédito político. E é aí que entram os prefeitos enquanto agentes de mediação entre parlamentares (emendas alocadas) e eleitores (votos). Os prefeitos têm interesse nesse tipo de relação porque o arranjo federativo impõe aos municípios a responsabilidade por diversas políticas públicas, mas sem a correspondente autonomia financeira. Logo, para realizar políticas e manter a a viabilidade eleitoral — seja para reeleição, seja para fazer sucessor, seja para alçar voos em esferas superiores —, os prefeitos necessitam de recursos extras, como as emendas parlamentares; em troca, atribuem publicamente o crédito ao parlamentar responsável pela destinação dos recursos ao município.

Essa relação de troca produz uma forma contemporânea de intermediação política que, por falta de melhor denominação, pode ser descrita como “prefeiturismo”. Trata-se de uma dinâmica funcionalmente semelhante à do coronelismo da Primeira República, mas com conteúdo institucional profundamente distinto. O coronelismo operava com um arranjo institucional que articulava presidencialismo atenuado (poucos poderes), federalismo estadualista e multipartidarismo com partidos estaduais e pouco estruturados — aqui, os coronéis emergiram como agenciadores de votos nas localidades, recebendo em troca favores e proteção.

Já o “prefeiturismo” emergiu num quadro institucional que mescla presidencialismo ativado (muitos poderes), federalismo municipalista e partidos nacionalizados que concorrem em eleições marcadamente competitivas. Essa mudança institucional favoreceu a transição do “agenciamento de votos”, pelos coronéis da Primeira República, para o atual “agenciamento de crédito político”, pelos prefeitos, numa dinâmica em que o poder de barganha se deslocou dos chefes locais para os detentores do poder orçamentário — até 2015, centrado na Presidência da República, e, agora, compartilhado com o Legislativo.

Desse modo, o presidencialismo ativado, o sistema eleitoral com voto pessoal e o federalismo municipalista brasileiros compõem um arranjo institucional cuja evolução dos últimos anos está na base da mudança do centro de gravidade do presidencialismo de coalizão. Não se trata de colapso do modelo, mas da disputa pelo seu comando num mecanismo que conecta o presidente, os parlamentares e os prefeitos num contexto de rearranjo institucional. No núcleo desse embate, temos o poder orçamentário. E mesmo com a recente troca do presidente da Câmara, essa luta continua, companheiro.

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