Promulgamos a nossa Constituição Federal faz 35 anos, em 1988. Em seu artigo 5º, o documento passou a nos ofertar liberdades individuais e coletivas que o regime militar ditatorial havia nos roubado. Parte das justificativas para o assalto de 1964 que durou mais de 20 anos estava associada a uma ameaça comunista que fazia, por todo o mundo e de distintas maneiras, Estados atuarem em nome de uma imposição ideológica que em nada combinava com a democracia.
A Guerra Fria obrigava um bloco de nações de esquerda a professar tal doutrina, assim como o mesmo era imposto a um conjunto de nações à direita. Fronteiras nacionais eram fortes, e a repressão ao contraditório não era pequena, espraiando-se pelo planeta. Ideologia era, digamos assim, política de Estado, até o fim do conflito entre Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em quase todos os países. Quando o muro de Berlim caiu, em 1989, e a União Soviética ruiu no início dos anos 1990, teve pensador político que previu, até mesmo, “o fim da história”. Nada feito, e, aos padrões atuais, este talvez tenha sido apenas o marco de seu início para a explicação dos tempos atuais.
Experimentar as liberdades de expressão e de associação sem marcações ideológicas obrigatórias foi algo incrível. Primeiro, porque permitiu o equilíbrio entre intepretações de mundo; segundo, porque notamos que tais leituras duras da realidade não precisavam mais reinar de forma absoluta e dividir as pessoas entre azuis e vermelhos, bem e mal, certo e errado. Eleitoralmente, a ideia de terceira via se fez realidade em 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, reproduzindo tendência vivida em outras nações. Era o começo de uma flexibilização que tinha tudo para, idealmente, nos tornar mais tolerantes, plurais e capazes de nos organizarmos em causas.
Em paralelo a tudo isso que se viveu, uma parte extremamente conservadora da sociedade brasileira começou a se avergonhar de seus posicionamentos presos a um passado que deixou de existir quando as liberdades individuais e coletivas foram garantidas e passaram a ser defendidas. A força de alguns movimentos sociais, que buscaram transformar injustiças históricas em conquistas sociais relevantes atreladas ao acesso a direitos universais, também garantiu uma capacidade extraordinária de vozes das chamadas minorias políticas se fazerem ouvir. É fato que ainda há muito para equilibrarmos gênero, raça, sexualidade, fé e tantas outras marcações no País, como também é verdade que avançamos. Mas para onde? E à custa de quê?
Incrível seria dizer que uma onda de diversidade fez a sociedade enxergar o diferente apenas como algo distinto a si, mas não foi exatamente isso o que aconteceu. Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, disse recentemente, nos Estados Unidos, que uma das maiores contribuições do governo de Jair Bolsonaro (2019–2022) ao País foi ter dado voz e potência aos conservadores, num Brasil conservador. Faz algum sentido.
Isto é, de forma isolada, isso não deveria ser exatamente um problema. Progressistas ou liberais nos costumes podem (e devem) conviver com conservadores, mas aqui está o ponto central: isso exige preparo e limites. E talvez aqui se fortaleça a sentença de Thomas Humphrey Marshall sobre educação como condição basilar à cidadania: uma formação capaz de transformar “o sujeito rude em cavalheiro”, a despeito das diversidades ideológicas que devem persistir entre nós. Mas qual ideologia? Qualquer uma, inclusive uma infinita combinação de temas e posicionamentos, afinal, somos livres para isso, certo? Sim, mas até onde?
E aqui está o problema central. O conservador que se sentiu à vontade para se perceber em pleno século 21, provavelmente após os movimentos de 2013 e o impeachment de 2016, não notou que, para a defesa de sua agenda do passado, existiam novos limites que neste ano completam 35 anos. Infelizmente, no entanto, o que assistimos é algo semelhante àquelas novelas em que o sujeito acorda um século depois e, vestido aos padrões do passado, vagueia pelas ruas proferindo absurdos aos ouvidos presentes depois de um longo período de sono. Contudo, perceba: se aparentemente, por um lado, a realidade é outra, por outro, Lira parece ter razão, e não existe uma pessoa deslocada no tempo, mas uma legião de personagens que, em determinados segmentos e locais, dão aos sujeitos do presente a sensação de que eles voltaram ao passado. Assim, fica a pergunta: milhões parecem ter dormido décadas ou milhões parecem que retroagiram ao passado em mais um clássico das ficções? A resposta é ainda mais literária: o presente não parece dar conta de explicar o encontro do passado com o futuro.
Nesse dilema do tempo, em que choques de valores e gerações se tornam evidentes, podemos tornar o cenário pior. Para confortar os dois universos, conseguimos customizar a comunicação de tal modo que cada um se tornou senhor da própria criação de informação, sendo auxiliado por uma inteligência artificial capaz de constituir bolhas que tornam cada realidade coletiva quase singular. O conforto do conservador passa a ser imaginar que só existam conservadores, o mesmo se aplicando aos progressistas.
Resultado disso para um povo que não tem educação formal e olhar amplo: intolerância, medo, sentimento de ameaça, conflito diante do diferente e toda sorte de doenças intelectuais que nos tornam violentos. O que fizemos da liberdade que o tempo, a democracia e a tecnologia nos deram de presente? Difícil dizer, mas, seguramente, algo que ameaça, pelo menos, a própria liberdade.
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