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O show deve continuar?

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pandemia de covid-19 (CPI do Covid), que vem ocorrendo no Senado Federal brasileiro nas últimas semanas, traz à baila alguns aspectos interessantes para refletirmos sobre a dinâmica política e a esfera pública brasileira. Mudanças na interação entre o Congresso e o público das redes sociais já haviam timidamente iniciado na CPI das Fake News, mas estas parecem alcançar outro patamar na CPI do Covid. Dois exemplos ilustram bem esta mudança.

O primeiro é a participação intensa de voluntários organizados em diversas redes sociais (Telegram, Discord, Twitter) auxiliando os senadores na organização dos dados, disponibilizando evidências sobre os depoentes no momento das declarações e antecipando a lista de perguntas e informações importantes. O senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) já declarou que a maioria de suas perguntas na CPI provinha das redes sociais. O senador Renan Calheiros (PMDB/AL), relator da comissão, afirmou que utiliza seu perfil no Instagram para hierarquizar as perguntas que planeja fazer aos depoentes.

Em seguida, vem a criação do “Camarote da CPI” no Twitter, o qual já conta com mais 6,65 mil tuítes e supera a marca de 65 mil assinantes atraídos pela seguinte proposta: “Pega a pipoca e vem acompanhar a CPI com a gente”. Neste formato, há também diversos quadros de humor e diversos produtores de conteúdo comentando nas redes sociais, em tempo real, o que está sendo dito e sobre os senadores que têm “lacrado”, bem como os depoentes que saem “ovacionados” e os que saem “humilhados”.

A CPI do Covid tem revelado uma nova interação comunicativa entre o Senado e o chamado “contrapúblico” (1): pessoas que se consideram desprezadas na esfera pública e apostam no refúgio das redes sociais para a produção de identidades políticas e reconhecimento social. Tal interação aparece como solução para resolver a acusação, recorrente, de que as instituições políticas formais são vazias de representatividade e fechadas à participação efetiva da comunidade. No entanto, gostaria de pensar esta interação por outro ângulo. O filósofo Jacques Rancière (2) nos propõe uma chave de raciocínio quando afirma que estética e política são, antes de qualquer coisa, maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Ora, o que está sendo posto em cena na CPI? E de que forma?

O comunicólogo Muniz Sodré (3) diz que esta nova interação “estético-comunicativa” produz uma sociabilidade de plataforma das redes sociais; uma sociabilidade programada para a performatividade do espetáculo, na qual toda cena política é transformada em uma espécie de telecatch, com comentadores canastrões e espectadores passivos e infantilizados. Um tipo de encenação política que, claro, não é novidade. Vale lembrar os discursos sobre as guerras realizadas pelos líderes políticos em Atenas e o próprio surgimento do teatro grego, ou o exemplo de Luís XIV, o chamado “Rei Sol” da França, que manteve a nobreza cativa com a utilização recorrente de táticas de encenação de espetáculo.

Todavia, hoje em dia, parece-me que a política e estética da CPI podem ser pensadas como tentativas de repactuação da partilha do mundo sensível. Não à toa, diversos espectadores buscam no inquérito da CPI os sentidos de racionalidade e de luto coletivo pela morte de quase meio milhão de pessoas. É preciso resgatar algum sentido na vida coletiva, diante da estética da indiferença ao sofrimento e da naturalização da precariedade promovida pela chamada “nova política” do bolsonarismo. Trata-se de resgatar algum horizonte de expectativas que não seja a certeza da eliminação e da morte. Um horizonte que conte com a riqueza do dissenso, mas que não chegue ao ponto da eliminação abrupta da diferença.

Entretanto, a busca por esse horizonte não seria exatamente uma postura negacionista frente à fantasia do Real que nos é imposta como inevitável? Os que se recusam à guerra civil; os que não reduzem a Política à lógica da polícia; os que não aceitam que seus corpos se tornem ativos financeiros; os sonhadores de outros horizontes, não seriam eles os “verdadeiros” negacionistas? E os que defendem que nenhuma partilha do mundo sensível seja possível; os que negam a universalidade do horizonte político; os que encaram o real como mistificação ideológica, estes não estariam certos ao considerar que a “nova política” e seu real espetacular seriam a única forma de permanecer na nova temporada de Walking Dead? Afinal, the show must go on

Referências:

1) Públicos e contrapúblicos, de Michael Warner (2016).

2) Le partage du sensible. Esthétique et politique, de Jacques Rancière (2000).

3) A sociedade Incivil. Mídia, liberalismo e finanças, de Muniz Sodré (2021).

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.