Artigo

O técnico, o político, o bebê e a água

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em 2018, política virou palavrão. O processo de descontentamento com os serviços públicos, que começou em 2013, culminaria com a conclusão de que o que faltava ao sistema político brasileiro seria mais “tecnicidade” e menos política. O método de apontamento de ministros pelo critério partidário, que, até então, caracterizara o processo construtivo de coalizão de nosso presidencialismo multipartidário, de repente se tornou o epicentro dos nossos problemas.

Interessante lembrar que o desenho de nosso sistema político deixou de fora a construção de maiorias estáveis para governabilidade. Isto é, o processo pelo qual os presidentes construíam sua base de apoio parlamentar, por meio do apontamento de ministros pelo critério partidário e pela distribuição de emendas parlamentares ao orçamento, jamais constou de um artigo constitucional, uma lei ou um decreto. Estas prerrogativas, escolha de ministros e execução de emendas, foram usadas como instrumento pelos presidentes até então para arquitetar maiorias, coalizões. Aqui, outro aspecto importante: não é função formalmente prevista do presidente da República formar coalizão, noutros termos, coordenar esta construção de maiorias multipartidárias.

 No entanto, os chefes de Estado se arvoraram desta função em busca de executar planos de governo a fim de realizar suas perspectivas ideológicas (nisto, temos outra palavra que precisamos tirar as crianças da sala para dizer: “ideologia”). Nenhum desses presidentes conseguiu realizar integralmente o conteúdo do que gostariam ou prometeram. Isso porque nosso sistema político é desenhado para que ninguém possa tudo, o que chamamos de “pesos e contrapesos”. Assim: o presidente é eleito, mas depende do Congresso para realizar sua agenda política. Cada um dos parlamentares também foi eleito e depende, por sua vez, dos líderes partidários e do presidente para realizar a sua agenda. As diretrizes do governo serão resultado de um processo de construção do acordo entre os agentes envolvidos.

 Todos esses atores são políticos, o que significa dizer que são detentores de cargos com prazo de validade e que logo precisarão passar novamente pelo crivo das urnas para serem reeleitos. São responsáveis pelos próprios atos, próprias escolhas e próprios votos. Estão sujeitos ao controle social por meio da transparência pública, elemento indispensável e fundamental em qualquer democracia. São representantes e podem ser penalizados pelas urnas caso não representem seus eleitorados. A eles cabem as respostas às questões de juízo de valor que não estão contempladas por técnicos ou especialistas, sua função é representar suas bases.

 Assim, um especialista em tributação pode dizer qual é a melhor ferramenta para tornar o sistema mais distributivo, mas quem decidirá que a desigualdade seja negativa e que caiba ao Estado distribuir renda e recursos é o Congresso, os representantes eleitos. Cidadãos não concordam em tudo, e o sistema democrático é aquele que inclui o maior número possível de agentes no processo decisório. Evidentemente que o melhor para todos é que essas decisões de juízo de valor sejam tomadas em bases tecnicamente sólidas, bem como que as políticas públicas dela resultantes sejam implementadas da forma mais eficiente e eficaz possível. Entretanto, quem toma a decisão de juízo de valor tem de ser o agente que pode ser penalizado por ela.

 Não à toa, selecionamos os técnicos pelo critério da técnica (concurso público) e os representantes, pelo critério da maioria (eleições). O técnico pode sofrer processo administrativo por desempenhar mal a função para a qual foi designado. Um político pode ser responsabilizado pelas urnas por não realizar o que o seu eleitorado esperava. Um técnico não poderá ser punido por suas decisões quanto a juízo de valor.

 O cargo de ministro de Estado é (e sempre será) um cargo político. O ministro é escolhido pela indicação do presidente da República – e dele pode ser retirado a qualquer momento. O presidente pode ser eleitoralmente punido caso escolha mal. Ministros que detenham cargos eletivos, deputados e senadores, são igualmente passíveis de punição eleitoralmente. Toda a sociedade ganha quando o critério de apontamento político leva em conta também a formação técnica que será de grande valia para o desempenho de sua função, mas cabe ressaltar que há um robusto corpo técnico de servidores públicos para realizar e responder por questões desta natureza.

Quem exerce cargo político precisa responder politicamente. Quando a sociedade clamou por ministros técnicos, esqueceu que a dimensão da política implica o agente poder ser responsabilizado e punido pelas urnas, independentemente de ele ser bem ou mal-intencionado. Afinal, parafraseando os constitucionalistas norte-americanos, se os homens fossem anjos ou se a técnica esgotasse o processo decisório, não precisaríamos da Constituição.

Nota:
A expressão “jogar a criança fora com a água do banho” é uma antiga metáfora para atos em que, com o objetivo de se livrar de algo secundário ou indesejado, perde-se também o valioso e essencial. Em inglês, a expressão foi elaborada por Thomas Carlyle (Occasional Discourse on the Nigger Question, 1853), em observação ao fato de que iniciativas tomadas contra a escravatura não poderiam deixar de lado a preocupação com os resultados maléficos para os escravos. Popularizada por Bernard Shaw, a metáfora se tornou recorrente em várias línguas.

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