Há 23 séculos, o historiador Políbio dizia que uma revolução se realizava pela circulação de regimes políticos que chegavam ao mesmo lugar de onde partiam. Na filosofia moderna, no entanto, essa ideia de revolução foi superada pela ideia de ruptura radical com a ordem vigente. Ultimamente, a ideia de revolução tem sido utilizada para descrever uma ruptura tecnológica com o seu par de obsolescência programada. Não raro, as Big Techs — as maiores empresas de tecnologia, como Google ou Microsoft — apresentam esses “avanços tecnológicos” a partir de uma visão medieval de revolução. A cada ano ou semestre, surgem novas “descobertas revolucionárias” de iPhones, carros autônomos, reconhecimento facial, Big Data e tecnologias de vigilância. Essas “revoluções” tecnológicas não só mantêm o status quo como aumentam as hierarquizações sociais, aderindo “naturalmente” às nossas vidas. Como afirma Jodi Dean, “Nós andamos em círculos, com novos aparelhos e atualizações que produzem lixo, apagam empregos e promovem distrações”. Hoje, podemos observar essa lógica “revolucionária” operar na política eleitoral brasileira.
Em recente pesquisa publicada pelo Instituto Veritá, Pablo Marçal aparece com 31% de intenções de voto para a Prefeitura de São Paulo no primeiro turno. Qual a explicação desse resultado? Marçal é a revolução tecnológica dentro da extrema direita nacional. Um tipo de bolsonarismo 2.0. Ele representa um estágio avançado dessa tecnologia, porque demonstra ser mais eficiente e consistente na unificação dos discursos e práticas que sustentam a base social orgânica e fiel dessa junção de significantes que é o bolsonarismo.
De fato, Marçal encarna muito mais do que o modelo Bolsonaro 1.0, a chamada teologia da prosperidade e o boom da indústria da autoajuda e do coaching, pois consegue produzir uma identificação mais profunda com o “empreendedorismo popular” enquanto fonte de dinamismo econômico e de ascensão social. Além do mais, Marçal fala para além de tios e tias de meia-idade do WhatsApp, atingindo também o público jovem do Instagram e do TikTok.
Ora, se o candidato se comunica muito bem com as classes populares, é porque estas já naturalizaram as hierarquias naturais do capitalismo, a privatização dos riscos e os discursos neoliberais de legitimação da ordem econômica que fazem da concorrência o princípio de organização da ordem social. A aderência dos dominados aos comandos da ordem dominante aparece como necessária à sobrevivência dos trabalhadores, que são constantemente levados a conceber as próprias estratégias de vida em referência à lógica do “empreendedor de si mesmo”. Cada um já entendeu que, num mundo sem solidariedade, é preciso se preparar para a guerra civil.
Condenações judiciais e inquéritos policiais tipificam Marçal como um criminoso, envolvido em golpes pela internet e lavagem de dinheiro. Contudo, na selva mercadológica, ele fez o que tinha que fazer para sobreviver — e, melhor ainda, saiu vencedor. Enriqueceu. É um legítimo representante do triunfo da vontade. Afinal, ele nos ensina que, com a força dos machos e dos fortes, a guerra contra o sistema pode ser vencida. Ética, culpa e vergonha são características dos fracos — e estes sofrem o que devem.
Jodi ainda afirma que a ideologia contemporânea da revolução tecnológica sustenta o entrincheiramento da hierarquia, adequando-se à lógica de empresas como a Amway, que, desde 1970, preconizava que os revolucionários da sociedade são aqueles que chegam ao topo da pirâmide (expropriando o trabalho alheio, inclusive de familiares) e enriquecem pelo “próprio esforço”. Esses seres acima da média são dotados de faro de oportunidade e coragem para agir para além do comportamento padrão. Do outro lado, sobram os defeitos, aqueles que estão abaixo da pirâmide. Os otários que não são capazes de “chegar lá”, mas que ainda podem apreender com a esperteza e o golpe de sortes dos diamonds. Assim, essa lógica da revolução tecnológica representada pelo esquema Ponzi produz a equivalência entre o negócio lucrativo, a pirâmide, a cura milagrosa, o conto do vigário e a teoria da prosperidade. E isso tudo pode ser sintetizado na figura de Pablo Marçal.
O candidato fala para um estrato de pessoas que superaram a condição de “ralé”, mas que estão em constante apreensão pelo medo de queda social. Trabalhadores que batalham para ter acesso ao consumo, à custa de crédito e endividamento. Trabalhadores cujos filhos conseguiram diplomas universitários, mas em instituições de pouco prestígio, e contam com pequenos negócios que se sustentam na evasão de impostos e outros dispositivos ilegais. Trabalhadores que se ressentem, profundamente, das marcas de distinção social como as de uma rede de capital social poderosa e do capital cultural que domina códigos que lhes escapam.
Nesse sentido, Marçal é o tipo ideal. Aos 37 anos, escapou da Justiça, “lacra” em cima dos “intelectuais”, afronta os poderosos (a Justiça) e sintetiza a agressividade na mais simplória das linguagens difamatórias. E a cereja acima do bolo: é temente a Deus. Ele, então, encontra o fiel público no macho que não consegue ser alfa por causa do feminismo, no adulto intelectualmente diminuído por causa do marxismo cultural e no empreendedor que não está rico por causa do dinheiro “roubado” pelo Estado e “dado aos parasitas do Bolsa Família”.
Marçal, portanto, é a revolução tecnológica do empreendedorismo político, pois ele encarna a fantasia de superação daqueles que carregam sentimentos de fracasso e impotência social. Ademais, ele vê na própria atividade política uma oportunidade de carreira. Aprendeu rápido com a versão anterior do Jair. Concordo com Rodrigo Nunes que diz que a extrema direita deve ser entendida também como um grande movimento empreendedorístico. É exatamente por isso que Marçal é a nova versão 2.0 desse grande movimento. Ele é a geração mais atualizada e eficiente dessa revolução da predação e do fundamentalismo concorrencial.
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