Os números são eloquentes: mais de 3,4 mil feridos, mais de 4 mil detidos, 45 mil policiais nas ruas (dentre eles, mais de 700 feridos), cerca de mil veículos incendiados, mais de 250 prédios públicos depredados, saques generalizados e milhares e milhares de manifestantes às ruas em quase todo o país. O assassinato de um jovem, descendente de imigrantes, durante uma abordagem policial foi o gatilho para uma insurgência que pôs em alerta o governo francês — e a própria União Europeia.
Evento semelhante havia ocorrido em 2005, quando dois jovens, também de origem estrangeira, perderam a vida durante uma perseguição policial. Seguiram-se três semanas de intensos distúrbios, saques, incêndios e destruição. No entanto, os atos ficaram restritos aos subúrbios de Paris, e a maioria dos jovens que entraram em ação era composta por imigrantes. Desta vez, embora tenham durado menos dias, as manifestações foram mais intensas e mais amplas, atingindo várias cidades. Os manifestantes, ainda mais jovens, eram majoritariamente franceses, pois pertencem às segundas ou terceiras gerações de estrangeiros que nasceram na terra de Macron.
Efeitos do colonialismo francês e do imperialismo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contribuíram para a formação de três problemas estruturais que vêm desestabilizando a política do país e estão nas bases desses levantes: a massificação e o profundamento da pobreza, o racismo institucionalizado e a xenofobia. Ao drenar os recursos das nações submetidas à colonização e à neocolonização, a França condenou muitas delas à miséria e ao subdesenvolvimento. Migrar para a “metrópole” foi (e continua sendo) a alternativa desesperada de vastos contingentes de seres humanos que procuram melhores condições de vida. As guerras e interferências desestabilizadoras que os países da Otan promovem na África e no Oriente Médio arrasam países, economias e sociedades inteiras. Logo, migrar para a Europa em busca de segurança decorre da imperiosa necessidade de sobrevivência.
Ao chegar nesse oásis, o imigrante se dá conta de que foi atraído por uma miragem. As políticas educacionais e sociais, que supostamente garantiriam a integração dos imigrantes na comunidade dos valores liberais, falharam rotundamente. Aglomerados em áreas de habitação periféricas e precárias, a população mais pobre, de maioria (ou de ascendência) estrangeira, vive distante dos centros urbanos onde trabalha e não dispõe de serviços públicos de qualidade e no volume necessário. Desse grupo populacional, 40% são jovens menores de 25 anos e 46% nem sequer conclui o ensino secundário. O desemprego nessas áreas é o dobro do existente nas regiões centrais. Isto é, a promessa do republicanismo francês jamais foi cumprida.
Oprimidos e sem perspectivas, muitos desses jovens acabam se envolvendo com o crime. Todos eles estão conectados com as redes sociais, têm sonhos, ambições e podem ser recrutados tanto por lideranças populistas nacionais como por operações psicológicas de outros países, visando às desestabilizações social e dos governos. Da mesma forma, esses jovens indignados também podem ser mobilizados por organizações políticas que defendem mudanças profundas no status quo econômico e político francês. Seja como for, a turbulência é inevitável.
Marine Le Pen, a máxima liderança da ultradireita, defende ações enérgicas e repressivas do Estado contra as manifestações, trazendo novamente ao debate público as suas objeções à política migratória. O apoio que Le Pen vem obtendo da população conservadora e da classe média moderada cresce a cada ano. As lideranças de esquerda se posicionaram contra a violência e o racismo policial, endossando o comunicado oficial do Alto Comissionado para os Direitos Humanos da ONU. Assim, o racismo e a xenofobia, as duas faces da mesma moeda, pelo menos no caso francês, estão expostos como categorias do debate político.
Aos efeitos do colonialismo, somam-se os resultados das políticas mercadistas que tanto socialistas como neoliberais procuraram implementar desde François Mitterrand, com destaque para os governos de Nicolas Sarkozy e Emmanuel Macron. Assim, a intensificação da pobreza, também batendo à porta da classe média, não encontra o acolhimento compensatório do Estado — sintomaticamente, a proposta de reforma da previdência mobilizou amplamente a população francesa em maio deste ano.
Esse quadro está se agravando com um terceiro conjunto de efeitos. Trata-se da política econômica ditada pela União Europeia, que vem produzindo inflação com recessão, num contexto de descontrole das dívidas públicas. Desacoplada da energia barata oferecida pela Rússia, a Alemanha já está em recessão e em processo de desindustrialização. A França corre contra o tempo para revitalizar a sua base de energia nuclear, mas enfrenta considerável alta nos preços. Os frequentes protestos dos “coletes amarelos” são uma reação ao empobrecimento generalizado, cujas reivindicações vão desde o controle do valor cobrado pelo transporte público e pelos combustíveis até a promoção de maior justiça tributária.
Preocupada com essa polarização cada vez mais radicalizada, a primeira-ministra, Elisabeth Borne, conclamou os franceses a tirar lições da crise e, acima de tudo, não perder a unidade nacional. Mais do que 1789, a França de hoje treme e teme um déjà vu de 1848, quando o célebre analista político e parlamentar Alexis de Tocqueville, naquele mesmo ano — momento em que os igualmente jovens Karl Marx e Friedrich Engels publicaram o Manifesto Comunista — da Tribuna, disse aos seus pares:
“Minha convicção profunda e meditada é que os costumes públicos estão se degradando; que a degradação dos costumes públicos nos levará, talvez brevemente, a novas revoluções. (…) Tereis, neste momento, a certeza de um amanhã? Sabeis o que pode ocorrer na França daqui a um ano, um mês, um dia, talvez? Vós ignorais. Mas sabeis, ao menos, que a tempestade marcha sobre vós (…). (…) Senhores, tal é a minha convicção mais profunda: no momento, creio, dormimos sobre um vulcão.”*
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.