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Quem apunhala quem?

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em abril de 2018, o então comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas, ameaçou o Supremo Tribunal Federal, por meio de um tuíte, na véspera do julgamento do Habeas Corpus que poderia ter garantido que Lula pudesse concorrer nas eleições presidenciais daquele ano. Em 2021, o antropólogo Celso Castro publicou um livro de entrevistas com o general, nas quais este fala: “A Comissão pegou-nos de surpresa, despertando um sentimento de traição em relação ao governo. Foi uma facada nas costas (…)”.

Essa entrevista revela uma série de elementos que pesquisadores têm apontado como parte da cosmologia da identidade militar. Essa identidade é construída a partir da construção de dois mundos simbólicos: o mundo militar e o mundo civil. O mundo militar encarna os valores simbólicos positivos de eficiência, seriedade e organização hierárquica virtuosa, e o mundo civil é apresentado como um contraponto de bagunça, deboche e corrupção.

Junta-se à representação dos mundos militar e civil, a percepção de que, no Brasil, não há “elites domésticas qualificadas” e que, na cosmologia militar, o corpo da pátria deveria se identificar com o corpo militar e as ameaças aos militares deveriam ser lidas como ameaças à Nação. Diante de possíveis ameaças, esse mundo militar mereceria e precisaria garantir a sua própria defesa, confundida com a defesa do País.

Esta socialização engloba uma série de valores fundados na cosmologia e na identidade militar, e é reforçada por uma rede de proteção social. A construção da “família militar” engloba uma série de estratégias de defesas corporativas e promove seus valores endógenos por dentro e por fora da corporação, segundo os princípios da Mobilização do Poder Nacional, caros à Escola Superior de Guerra. A família militar não é nenhuma abstração: ela é materializada pelo fato de que muitos militares (mais de 60%) são filhos, netos, bisnetos de militares, e que a maioria dos casamentos também acontece entre essas famílias.

Celso Castro aponta que, desde o início da história republicana brasileira, os militares têm exercido um poder desestabilizador. Por essa razão, não se pode acreditar que os atos criminosos apresentados no inquérito da Polícia Federal (PF) sejam atos exercidos de modo excepcional pelos militares.

Vamos analisar o exemplo do general Walter Braga Netto, da turma dos generais Eduardo Villas Bôas, Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Generais do Exército que possuem os mesmos pontos em comum na carreira, como indica o antropólogo Piero Leirner: comandos na Amazônia, passagens por Forças Especiais, Guerra na Selva, Paraquedistas, comandos no Haiti. 

Também tiveram em comum um histórico de fortes intercâmbios com Washington, Fort Bragg e oficiais norte-americanos na Organização das Nações Unidas (ONU), especialmente a Estratégia Nacional de Combate a Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), além de relações próximas com desembargadores, juízes, promotores e procuradores, especialmente os do bunker da Lava-Jato.

Braga Netto nasceu em família tradicional no meio militar. Chefiou o grupo de observadores militares na autoridade transitória das Nações Unidas no Timor Leste, participou da intervenção militar do Brasil no Haiti, e foi adido militar do exército nos Estados Unidos, entre 2011 e 2013. Em 2016, ele foi coordenador-geral da Defesa nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, no Rio de Janeiro,, e em 2018 foi nomeado pelo ex-presidente Michel Temer como interventor de segurança pública no Rio de Janeiro.

No dia 13 de março de 2018, Braga Netto nomeou, como chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o delegado Rivaldo Barbosa, um dos acusados de organizar o assassinato da vereadora Marielle Franco — que ocorreu no dia seguinte ao de sua nomeação, 14 de março. Em março de 2021, segundo o jornalista do Intercept, Paulo Motoryn, Braga Netto apareceu no Diário Oficial da União sob investigação da Controladoria-Geral da União (CGU), por ter estabelecido um contrato de R$ 40 milhões com a empresa norte-americana CTU Security LCC, durante a intervenção no Rio de Janeiro. Essa empresa foi acusada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos de ser responsável pelo assassinato do presidente do Haiti, Jovenal Moïse, em julho de 2021.

Piero Leirner alerta que esse “grupo familiar” da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) reorganizou suas pretensões interventivas a partir do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), o qual é construído sob a justificativa da necessidade de combate às “ameaças híbridas”, aos terroristas, às organizações criminosas e à corrupção estatal. Segundo Leirner, essa família militar reestrutura-se, a partir da liderança de Villas Bôas, com organizações internacionais e nacionais capacitadas em vigilância e espionagem.

É terrível perceber como o poder desestabilizador dos militares está enraizado e disseminado de tal forma que não se sabe ao certo quem e qual o nível de envolvimento da família militar na defesa do que chamam de contragolpes necessários. Lembremos que a ameaça em forma de tuíte de Villas Bôas ao STF foi sugerida pelo general Tomás Paiva, atual comandante do Exército, nomeado em janeiro de 2023. Simbólica é a fala de Villas Bôas quando afirma na entrevista supracitada: “Os políticos estão presos a alguns rituais que, para nós, soam como absurdos”.

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