Artigo

Quem tem medo do gênero?

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

O filme A substância (Coralie Fargeat, 2024) é considerado um body horror, obra cinematográfica que retrata o corpo humano como objeto central do terror, com mutilações ou transformações consideradas perturbadoras.

O longa nos remete ao conceito de abjeção de Julia Kristeva: ela explica, no livro Powers of horror (1982) que o abjeto é aquilo que excretamos, rejeitamos e violentamente excluímos de nossos corpos para nos tornamos um “eu”. Julia ressalta que aquilo que é abjetado nunca é banido por completo; o abjeto permanece como ameaça consciente ou inconsciente para lembrar que aquilo que é repelido permanece bem próximo e que pode sempre retornar e revelar a inadequação ou a sujeira entranhada em todos nós.

O abjeto, nesse sentido, é algo perturbador que contesta uma identidade, um sistema, uma ordem. Por isso, a abjeção é, antes de tudo, um sentimento de náusea causado pelo sujeito que enfrenta aquilo que vive na fronteira entre o seu “eu” e o seu “outro” que deseja expelir. 

A construção do abjeto estabelece, assim, as fronteiras do corpo — que são, também, os contornos do sujeito. Uma vez que cruzamos uma determinada fronteira, a substância se torna suja e poluidora para nós. Os restos de nossa vontade frustrada podem ser devolvidos como excrementos de nossa impotência enquanto sujeito soberano. Mas ressaltemos que as fronteiras do corpo são os limites construídos por discursos e políticas socialmente hegemônicas.

A lógica da abjeção serve para indivíduos que, uma vez separados do próprio local natural na ordem social, deixam de ser entendidos como substâncias benignas e se tornam estranhos e perigosos para o que reina aí fora. A abjeção, então, é a maneira pela qual a ordem dominante excrementaliza corpos que esta marca com determinadas despossessões, transformando-os por inteiro em dejetos, os quais são sempre nomeados como “outros” e estariam presos a zonas de abjeção social (de não ser).

Vale lembrar que essas marcações de abjeção espacial são fundamentalmente construídas pelas divisões sociais e sexuais do trabalho. O corpo do escravo precisa desaparecer para que o senhor possa se apropriar dos objetos produzidos pelo trabalho desse escravo. A domesticidade feminina que sustenta a produtividade masculina, por exemplo, precisa desaparecer para que os homens produtivos possam tornar os corpos das mulheres objetos sem valor. 

Imaginemos ficar nessa zona. É aterrorizante não poder ter valor em si. Deve dar mais medo ainda em quem ainda não está na zona, mas se mantém próximo. Isto é, uma política de abjeção tem como correlato necessário o medo. E A substância trata de que medo? Parece o mesmo tipo de pavor mobilizado pelo recém-eleito Donald Trump em seu discurso de posse, quando afirmou que a “ideologia de gênero” normaliza a anomia que ele promete enfrentar em nome de uma ordem patriarcal “segura”. Esse mesmo medo que leva à fantasia por parte dos eleitores de restauração de uma “ordem adequada” e que legitima a destruição de políticas públicas consideradas privilégios e benesses para os corpos considerados abjetos.  

Assim, a retórica de Trump usa “o gênero” como culpado pelos temores desnorteadores que muitas pessoas sentem, hoje, sobre os seus modos de vida e onde estarão localizados, nas zonas de abjeção (matáveis ou não enlutáveis) ou nas zonas adequadas. Contudo, como esclarece Butler em Quem tem medo do gênero? (Boitempo, 2024), para que esse efeito do medo condensado na forma “ideologia de gênero” funcione, vários elementos devem ser condensados. E essa condensação em A substância aparece na figura da medusa.

No fim do filme, na Calçada da Fama, fica claro que o corpo que encarna a feminilidade é um amontoado de carne fixado em uma imagem que suscita fascínio e terror. Uma figura da qual precisamos desviar o olhar, pois há algo de abjeto, indizível e insuportável na imagem de feminilidade, especialmente quando se olha através das lentes daqueles homens autorreferenciados como “imbrocháveis”.

Horrível é pensar que se você, mulher, não estiver com o seu corpo no lugar da reprodução biológica e da existência para a satisfação de homens intitulados de “Jesus Laranja” (expressão atribuída à imagem de Donald Trump por alguns congressistas republicanos dos Estados Unidos), pode ser violada, tanto simbólica quanto materialmente. Mais difícil ainda é para os corpos que, mesmo se preservando no lugar “adequado” da “recatada e do lar”, servem de comércio para o estupro (como foi o caso de Gisèle Pelicot, cujo marido a drogou durante anos para submetê-la a centenas de estupro cometidos por mais de 80 homens, na França).

Na linguagem dos “viris”, o mundo ocidental está em crise porque os corpos considerados como abjetos resolveram circular e, pior ainda, resolveram desejar. O desejo dos corpos abjetos não merece somente punição e violência, como também políticas preventivas de controle e submissão. Pois esses corpos precisam carregar a síndrome que consiste em satisfazer todos os desejos do único ser que possui valor — o “jesus alaranjado” ou aquele que acredita que vai repovoar a Terra a partir de Marte.

Em suma, o filme A substância revela a monstruosidade presente na construção da feminilidade como abjeção do patriarcado, e de como homens “imbrocháveis” precisam desses monstros para garantir que as fantasias de masculinidade se concretizem e os próprios medos de “feminilização” dos seus corpos sejam abjetados.

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