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Russos jogam xadrez, chineses jogam Go

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

No Livro I, da obra Sobre a Guerra (Vom Kriege, 1832), o general Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz trouxe uma contribuição fundamental ao estudo do tema, reconhecida, e sublinhada, por ele próprio: a guerra é um instrumento para alcançar objetivos políticos. Ao refletir sobre a natureza desse fenômeno, Clausewitz foi além da concepção corrente de que as guerras são meros confrontos ou duelos violentos entre inimigos, que visam à destruição ou à sujeição de um pelo outro. Sim, as guerras são atos de violência, recorrem à força física, provocam destruição, mas estes são os meios para se atingir objetivos ulteriores e superiores.

Disse Clausewitz (Seção 23, Cap. I, Livro I): “a guerra (…) sempre começa a partir de condições políticas, e é deflagrada por motivos políticos. Portanto, a guerra é um ato político”. E ainda, “a guerra não é somente um ato político, mas também um instrumento político real, uma continuação da política de comércio (…) por outros meios (…). O objetivo é político, a guerra é o meio, e o meio, em sua concepção, deve sempre contemplar o objetivo” (Seção 24, idem). Isso quer dizer que a aniquilação do inimigo ou a sua sujeição não são fins em si mesmos, mas duas modalidades de resolução do conflito que permitem, cada qual, alcançar algum objetivo político.

Embora possa variar quanto ao conteúdo, podemos dizer que, essencialmente, todo objetivo político se reduz a duas coisas: (1) ter acesso a recursos alheios e/0u (2) defender a posse de recursos já conquistados. Quanto mais recursos tiver uma comunidade política, maior a sua capacidade de sobrevivência, bem como o seu conforto, a sua riqueza e o seu poderio econômico. Assim, se a guerra é um ato de violência para obrigar o oponente/inimigo a se submeter à nossa vontade, a nossa vontade consiste em defender os recursos que temos perante as ameaças externas e em proporcionar o acesso favorável aos recursos de que não dispomos.

Brotam disso, de acordo com Clausewitz, as duas motivações básicas para a guerra. A primeira são as hostilidades instintivas, ou seja, reações violentas diante de ameaças existenciais advindas de potenciais inimigos e, também, os sentimentos de ódio em relação a outros povos. A segunda são as hostilidades intencionais, assentadas no interesse racional que orienta uma ação deliberada, calculada e repleta de estratégias e táticas. Ambas as motivações não são excludentes, pelo contrário – para angariar o apoio da população e mobilizá-la para a guerra, os dirigentes, imbuídos de hostilidades intencionais, costumam acionar as hostilidades instintivas: tal inimigo ameaça a nossa existência! Esse alerta, é claro, serve para ativar ou reativar sentimentos de ódio.

Mobilizada para a guerra, a comunidade procurará atingir o seu objetivo político de duas maneiras, também articuláveis: (1) ataques para destruir o inimigo e/ou (2) ataques para desarmar o inimigo. A simples aniquilação do inimigo, além de muito difícil, raramente contempla alguma fundamentação moralmente aceitável; por isso, para cumprir o objetivo transcendente mais viável, e justificável, da guerra – a imposição de nossa vontade (defesa ou apropriação de recursos) –, o objetivo inerente (a guerra como meio) deve ser desarmar o inimigo.

Desarmado, o inimigo se vê indefeso, submetendo-se, mais cedo ou mais tarde. Impõe-se, portanto, quem vence a guerra. Decorre-se disso que a meticulosa preparação é crucial – jamais se deve começar uma guerra sem que se avalie o poder de resistência e reação do inimigo. Por consequência, as guerras nunca eclodem abruptamente, num ato isolado e surpreendente; trata-se, sempre, de um processo que leva tempo e que é precedido por eventos indicativos do que está por vir.

Uma vez desencadeadas, as guerras envolvem atos sucessivos, que podem levar, cada um deles, a resultados diversos – se A, logo, B; se C, logo, D; e assim por diante. Isso significa que as partes beligerantes devem se preparar para cada eventualidade, inclusive para acasos, e agir em conformidade com os seus planos de contingência a cada novo movimento. Por isso, como observou Clausewitz, a guerra é uma competição que se assemelha a um jogo, mas um jogo muito sério, com custos elevados e consequências muitas vezes catastróficas. Planejamento e antecipação das ações inimigas: com isso se pode evitar ou vencer uma guerra!

Às vezes, a guerra que se trava é o jogo principal, cujo objetivo político se esgota com o desfecho do próprio conflito. Outras vezes, a guerra circunscrita é apenas o lance mais visível de um jogo muito maior, cujo desenlace pode chacoalhar tudo que parecia sólido, mas que, na verdade, está a se desmoronar. A guerra na Ucrânia é este segundo tipo de jogo. Nele, os russos, que estão ganhando, jogam xadrez, e os chineses, que são o alvo principal dos Estados Unidos e da Otan, jogam Go.

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