A filosofia busca compreender o sentido para a complexa vida em sociedade. Um conjunto de pensadores associado ao que se convencionou chamar de contratualismo, pregou que viver este tipo de associação se ancora em valores essenciais e capazes de justificar “a escolha” das pessoas. O primeiro está relacionado à vida. Eu escolho respeitar um “contrato de convivência” em nome de minha sobrevivência, ou seja: não mato, mas também não sou assassinado. O segundo elemento está associado à propriedade. Eu escolho respeitar um “contrato de convivência” em nome daquilo que possuo ou desejo possuir, ou seja, não roubo, e não sou roubado.
A soma destes dois elementos, o respeito à vida e à propriedade, deu ao mundo ocidental uma perspectiva inimaginável à realidade passada: ofertou a possibilidade de as pessoas terem perspectivas de longo prazo, de se planejarem em torno do que seria um mínimo de respeito à vida e às posses. Isso é base, por exemplo, ao capitalismo.
Pois bem. Nesse universo alguns se deram bem, mas o Estado teve que intervir, e se fez mais robusto. Entre os séculos XIX e XX ele se viu responsável pela dignidade e o bem-estar social em perspectiva universal, algo que só a defesa da vida e das posses não eram capazes de contemplar.
Para se chegar nessa situação, algo precisou ser considerado em termos de contrato. Para além de vivos e empossados, deveríamos ser capazes, coletivamente, de construirmos nossas próprias regras. Nada do rei a garantir autocraticamente a vida, tampouco do parlamento aristocrático e burguês a defender a propriedade. O “povo” deveria ser capaz de estabelecer seu contrato social, e contrariá-lo seria como “cortar na própria carne”. Aqui temos o terceiro valor essencial, este mais coletivo que os anteriores. E por que valorizamos tanto os primeiros, e aparentemente pouco defendemos este terceiro? Sob a lógica contratualista, uma sociedade representa um pacto pela vida, pelos bens e pela capacidade de criar coletivamente suas regras.
No Brasil, um homicídio doloso é punido com pena entre seis e 20 anos de prisão. O roubo, por sua vez, em tese é punido com penas que variam entre quatro e 10 anos de prisão. Em ambos, podem ocorrer agravantes, assim como atenuantes.
A combinação entre estes crimes, chamada de latrocínio, é somada e pode gerar penas de 20 a 30 anos de detenção. Veja o que ocorre quando ultrapassamos dois elementos associados às razões para a vida em sociedade. Com um detalhe: tentativas de roubo e homicídio também estão previstas na lei como crimes. Em ambos, a pena atinge algo como um a dois terços do previsto em caso de “sucesso”.
Mas e o crime por tentativa de “Golpe de Estado”, que em linhas gerais simboliza a ideia de colocar-se fim ao delicado exercício de construção conjunta da realidade numa realidade democrática? As penas aqui variam de quatro a doze anos, podendo carregar agravantes associados, por exemplo, às tentativas violentas de se promover a abolição do Estado Democrático de Direito. Aqui, assim como assassinato e roubo se somados multiplicam penas, as diversas ações combinadas geram algo semelhante.
Em resumo: o STF somou penas e condenou quem, entre 2022 e 2023, tentou “assaltar ou assassinar” a Democracia. Com um detalhe: a tentativa, e não a consolidação da abolição do Estado Democrático de Direito por meio de um Golpe de Estado, teria como resultado, penas entre um e dois anos de prisão. Por que tão pouco? Em caso de “sucesso” nas tentativas de roubo e assassinato, por mais tenebroso que seja o resultado, ainda se costuma verificar o Estado presente para julgar e condenar. Mas no caso de um Golpe de Estado “bem-sucedido”, o que restará de possibilidade de julgamento? Provavelmente nada semelhante à ideia de construção coletiva como justificativa para a vida em sociedade.
O senso comum no Brasil se revolta contra a ideia de roubo e de assassinato de forma naturalizada. Quem bom! Ruim é que continuamos matando e roubando. Assim, para muitos as penas são consideradas pequenas. Por que este sentimento em relação à tentativa de derretimento da Democracia não é o mesmo? Por que alguns setores da sociedade defendem a ANISTIA?
Aqui parecem nos faltar valores coletivos essenciais. O “perdão” desejado aos criminosos que tentaram assaltar e assassinar um elemento contratualista fundante da vida em sociedade precisa ser visto sob este prisma. Falhamos ao não educar e ao não construir este valor como essencial, mas ninguém pode alegar ignorância para autodefesa. Que paguem os golpistas, assim como devem pagar os assassinos e os ladrões. Que paguem em nome do que aparentemente ainda é a parte mais frágil do essencial tripé a justificar a vida em sociedade. O Congresso Nacional, como representante de um povo desapegado a esta lógica não pode servir de espelho à frágil ignorância de quem acha normal atentar contra a Democracia. Aqui, o Judiciário acerta e o Legislativo deveria servir de exemplo.
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