Artigo

Xi, Lula e Mr. Monroe

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Lula foi à China. Pequim, cuidadosamente receptiva, saudou o presidente brasileiro com uma logística impecável. Na cerimônia de boas-vindas, em frente ao Grande Palácio do Povo, Lula percorreu o circuito traçado por um longo tapete vermelho, num passeio milimetricamente cronometrado com as peças musicais executadas por uma competentíssima banda militar. Sempre ombreado por Xi Jinping, Lula, em dado momento, deparou-se com um jardim de bandeirolas esfuziantes, animadas por uma criançada saltitante e sorridente. Enquanto isso, ouvia-se a canção Um novo tempo, de Ivan Lins e Vitor Martins. “Prestenção!”– como dizia minha tia da insuperável Minas Gerais –, chineses são cheios de sutilezas e simbologias! Ôh, se são!.

Mas isso não foi tudo, não, senhor: “Ojo!””, como diria meu bisavô, que, reza a lenda, veio fugido de Sevilha com uma mão na frente e outra atrás, e ninguém jamais soube explicar direito do que ele fugia. Como é de conhecimento dos versados na arte da diplomacia, apenas a um grupo muito seleto de líderes e países o governo chinês concede o privilégio de chamar de “bons e velhos amigos”; pois foi desta mesmíssima maneira que Xi se dirigiu a Lula, logo no início da reunião aberta com os respectivos staffs. Sem mostrar os dentes, pois isso seria espalhafatoso demais para um líder tão circunspecto, o presidente chinês até ousou estirar a boca no fio comprido de um sorriso daqueles que ligam as orelhas e arrastam os olhos ternos consigo.

“Ah, estes gestos são meras formalidades de quaisquer relações comerciais beneficiosas entre dois países”, diria alguém. Sim, a China é um “negócio da China” para a economia brasileira, especialmente para as políticas de desenvolvimento que precisam de investimentos na infraestrutura e na ciência e tecnologia. Sim, o Brasil é um “negócio da China” para a China, pois, além do fornecimento de commodities, nosso país pode ser um polo da produção industrial chinesa destinada aos mercados da região, inclusive o norte-americano, além de oferecer um vasto estoque de consumidores para a sua indústria e até soluções na área da Energia Verde. Claro, mais de 200 empresários e uma penca de políticos não embarcaram na viagem para fazer turismo.

“Ojo!” A China, entretanto, faz negócios com meio-mundo — e nem por isso trata esse meio-mundo da mesma maneira. O que Xi Jinping acolheu calorosamente foi o retorno do “B” ao grupo do Brics. Um retorno à geopolítica da multipolaridade! Se, para bom entendedor, meia palavra basta, o que dizer do discurso de Lula na cerimônia de posse de Dilma Rousseff na presidência do Novo Banco de Desenvolvimento, em Xangai? Correu o mundo a notícia de que o presidente defende o fim da hegemonia do dólar nas transações internacionais. Wall Street tremeu! A Casa Branca amarelou! A coroa quase caiu da cabeça de Charles! O senador norte-americano Marco Rubio se empalideceu: “Daqui a pouco, já não poderemos mais sancionar nenhum país!”. Pobre coitado.

Na política externa ziguezagueante de Lula — ora pendendo para o realismo das relações internacionais e a autonomia do Sul Global, ora pendendo para o liberalismo de fachada dos democratas e neoconservadores estadunidenses —, a defesa da desdolarização até fez James Monroe se contorcer no túmulo. Monroe, morto de raiva (trocadilho infame, mas ilustrativo), quase se levantou da cova quando Lula voltou a responsabilizar a Ucrânia, e não apenas a Rússia, pelo conflito bélico que persiste por mais de um ano. Pasmem: sob os holofotes da mídia na China e, depois, nos Emirados Árabes, Lula foi ao cúmulo dos sacrilégios ao afirmar que os Estados Unidos e a União Europeia, ao invés da paz, estimulam a guerra. 

Pronto! Governo norte-americano, Otan, União Europeia e Zelensky se arrepiaram da nuca até o dedão do pé: “Papagaio da propaganda russa!”; “Não conhece os fatos da guerra!”. Agora, do arrepio, os nossos amigos de Washington, Bruxelas e Kiev chegaram à boca espumosa da ira quando, tão logo pisou em Brasília vindo da China, o presidente recebeu a visita do diplomata russo Sergey Lavrov. Em 4 de abril, Celso Amorim, assessor especial da Presidência para assuntos de política externa, foi recebido no Kremlin por Putin; agora, Lavrov reúne-se com Lula e, ainda, diz haver similaridades entre os dois países na percepção da política internacional? O que é isso, companheiro? O senhor Monroe está furibundo!

Que diacho, afinal, acontece na China? Macron esteve lá outro dia e voltou tão mudado que nem sei! Ele deu de pregar a independência europeia dos Estados Unidos: “Não podemos ser vassalos”. Touché! Incrédula, a União Europeia esconjurou tal blasfêmia e, para botar de volta as coisas nos eixos da “ordem mundial baseada em regras” (como postas por Washington), enviou a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, à terra de Sun Tzu. Como de hábito, dada a sua expertise, pregou mudanças de 360 graus [sic] na política chinesa – assim como já havia preconizado à Rússia.

No Brasil, a grande imprensa, sempre neutra, democrática e patriótica, já deu início à operação de resgate do “Lulinha Paz e Amor”. Que negócio é esse de política ativa e altiva? Se seguir nesta toada, Washington terá de impor mais democracia no nosso país, de novo! Ora, há de se exorcizar este demônio da multipolaridade. “Prestenção” brazucas: o finado senhor Monroe está sepultado e anda um tanto moribundo, mas continua vivo.

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