Artigo

Zelensky, Trump e outros abutres

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
U
Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Um fato sem precedentes! Assim a grande mídia mundial e vários analistas descreveram o constrangedor bate-boca entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky dias atrás. Auxiliado pelo vice-presidente, James David Vance, Trump deixou de lado as meias palavras e o verniz, característicos da costumeira hipocrisia dos presidentes estadunidenses, para mostrar aos “aliados” como os amos do império “fazem negócios”. Mais uma vez, a máxima de Henry Kissinger foi confirmada: ser inimigo dos Estados Unidos pode ser perigoso, mas ser amigo é fatal.

Zelensky bem que mereceu! Um farsante alçado à condição de presidente para ser a face visível do “projeto Ucrânia”, acostumou-se a ser paparicado pelo governo Biden toda vez que fazia beicinho e repetia a cantilena de continuar com a guerra contra o malvado e sanguinário Putin para defender a democracia, a Europa e toda a humanidade. Recebeu auxílios bilionários em armamentos, recursos variados e cash, grande parte desviada ou surrupiada pelo seu grupo, sem incomodar-se um milímetro com a dizimação do seu país e de parte substancial da sua população. Agora, sem notar que há “um novo xerife em Washington” — para citar a fala estrepitosa de J. D. Vance na 61ª Conferência de Segurança de Munique —, Zelensky teve a desfaçatez de não apenas fazer birra diante das câmeras contra os termos de paz impostos pelo novo governo dos Estados Unidos, como, de forma acintosa, provocou a destemperada altercação com Trump no sacrossanto Salão Oval da Casa Branca.

Mais cara de pau do que uma máscara balinesa, Trump não deixou por menos. Fez de conta que ele próprio não deu palpável contribuição ao “projeto Ucrânia” durante o seu primeiro mandato, e que foram os Estados Unidos que levaram o país ao confronto. Já em curso pelo menos desde meados dos anos 2000, o “projeto Ucrânia” consistia em fechar o cerco da Organização do Atlântico Norte (Otan) em torno da Rússia, para provocar uma guerra de desgaste, com o objetivo de desestabilizar o governo russo e, assim, levar à deposição de Putin, além de, no longo prazo, à balcanização do país em pequenas repúblicas controláveis pelo Ocidente. Tratava-se, também, de desacoplar a Rússia da Europa, principalmente da Alemanha — isso manteria o domínio estadunidense sobre a União Europeia e abriria o mercado da região à exportação de gás do país norte-americano. Ainda, a própria guerra alimentaria o complexo industrial-militar dos estadunidenses, principal fornecedor de armamento para a Europa e a Ucrânia. A própria Ucrânia, destroçada pela guerra, teria os seus recursos apropriados pelos estadunidenses e britânicos, além de oferecer oportunidades de negócios em sua reconstrução.

No entanto, a Rússia não somente venceu a guerra, inclusive na frente econômica, como fortaleceu a sua indústria militar e assumiu uma posição de liderança no contexto da multipolaridade emergente. Mais do que isso, Putin selou alianças abrangentes com a China, o Irã e a Coreia do Norte, além de ter dinamizado o Brics, que, no longo prazo, ameaça a hegemonia do dólar. Na verdade, o desgaste maior foi sofrido pelos Estados Unidos e pelos demais países da Otan — vários governos europeus caíram desde 2022, e, nos Estados Unidos, os democratas perderam a eleição presidencial.

Reconhecendo a situação adversa, Trump mudou a estratégia geopolítica dos Estados Unidos — ao se apresentar como promotor da paz, jogando a responsabilidade pelo conflito no colo dos governos de Biden, dos países europeus e da Ucrânia, escamoteia o fato de que o seu país perdeu essa guerra por procuração. Complementarmente, abre espaço para investir na “negociação abutre” que visa a se apropriar das sobras de um país que os Estados Unidos ajudaram a destruir — juntamente com os seus vassalos europeus.

Aí está: nesse jogo não há inocentes. Para garantir-se diante de uma eventual derrota democrata na eleição presidencial, Zelensky encontrou-se com Trump em 27 de setembro de 2024. Ele tinha em mãos uma proposta para encerrar a guerra, cuja contrapartida era a segurança do seu grupo, especialmente, e da Ucrânia; em troca, os Estados Unidos teriam direito de explorar os recursos minerais do país, inclusive as terras raras. Os britânicos souberam disso e Keir Starmer, primeiro-ministro do Reino Unido, aportou em Kiev em 16 de janeiro deste ano, poucos dias antes da posse de Trump. Starmer e Zelensky assinaram um acordo para a segurança da Ucrânia, denominado Parceria de 100 anos. Numa das cláusulas secretas do documento, a Ucrânia cede o controle de portos, da infraestrutura de produção e distribuição de energia, e das terras raras.

Quando Donald Trump tomou posse e reivindicou a assinatura do acordo, Zelensky, que já havia assinado um acordo similar com o Reino Unido, começou a titubear. Por isso, Trump subiu o tom nas críticas a ao presidente ucraniano, chamando-o de ditador, referindo-se à expiração do seu mandato. A questão central, nesse caso, é que, sendo um presidente ilegítimo, o contrato assinado por Zelensky com o Reino Unido não tem validade. Por isso, também, Starmer e membros da União Europeia fecharam o seu apoio em torno de Zelensky, almejando remediar a periclitante condição das suas economias domésticas com a exploração dos recursos da Ucrânia. No dia 2 de março, o presidente ucraniano retratou-se com Trump e disse estar pronto para assinar o acordo com os Estados Unidos. Ele, porém, negocia com algo que o seu país provavelmente não poderá entregar, porque não há certeza de que existam terras raras comercialmente exploráveis no seu território. Esta é uma briga de abutres pela carcaça de um país destruído.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.