Comércio ilegal de ouro

09 de maio de 2023

A edição da MP do Ouro, em conjunto com o fim da declaração de boa-fé na compra da origem do minério e a exigência de NF-e, tende a reduzir as operações ilegais de ouro, mas é insuficiente para coibir a atividade criminosa.

D

Durante anos, as operações irregulares de compra e venda de ouro extraído de garimpos nos Estados da Região Norte ocorreram em total informalidade dentro de um ambiente em perfeita concordância com a legislação. Mas… como? Bastava um garimpeiro entrar em uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), escritório devidamente autorizado pelo Banco Central (Bacen) para a compra de ouro, e garantir que o minério foi extraído em uma área regularizada por meio de uma Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), expedida pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Sem que houvesse qualquer fiscalização e com o apoio legal da “presunção de boa-fé”, prevista pela Lei 12.844/2013, a DTVM comprava o minério e o negociava para o exterior ou para joalherias, utilizando nas operações notas fiscais de papel, sem registro eletrônico algum da transação — afinal não havia nenhuma norma que obrigasse o uso da NF-e.

Segundo estudo do Instituto Escolhas, entre 2015 e 2020, cerca de 229 toneladas de ouro — metade da produção nacional do minério — apresentaram indícios de ilegalidade quanto à origem, com fortes suspeitas de terem vindo de terras indígenas e Unidades de Conservação (UCs).

“Faço uma analogia com o filme ‘Diamante de Sangue’ [obra de 2007, com Leonardo DiCaprio no papel de um contrabandista internacional de comércio de diamantes na África], no qual os conflitos pela posse das jazidas não levavam em conta os danos ambientais e as questões sociais e culturais. Como o comércio ilegal de ouro sobreviveu tanto tempo sem nota fiscal eletrônica ou fiscalização?”, indaga Paulo Russo, coordenador-geral de Proteção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável por 334 UCs e 14 Centros Nacionais de Pesquisa e Conservação.

A atividade do garimpo do ouro existe há décadas, cujas imagens emblemáticas do “formigueiro humano” em Serra Pelada (PA) rodaram o mundo nos anos 1980, mas ganhou força na região amazônica a partir de 2013, com a denominada lei da declaração de boa-fé, expandindo para territórios indígenas, principalmente no Pará, no Mato Grosso, no Amazonas e em Roraima, e áreas no entorno de UCs.

Estudo feito por satélite pelo MapBiomas mostra que a devastação causada pelo garimpo saiu de 99 mil hectares, em 2010, para 196 mil hectares, em 2021, o que representa um área maior que a cidade de São Paulo. Na Amazônia, revela o estudo, o avanço do garimpo nas terras indígenas cresceu 632% no mesmo período. Nas UCs, eram 20 mil hectares em 2010, atingindo 60 mil hectares em 2021 — e é exatamente nesSe período que surgem as DTVMs  autorizadas pelo Bacen, todas sediadas em São Paulo e com escritórios em cidades da Região Norte, como Boa Vista (RR), Oiapoque (AP) e Itaituba (PA). “É uma relação que envolve o crime organizado e o Poder Público instalado nessas cidades”, destaca Russo, referindo-se a estudos e reportagens que apontaram relações familiares e de amizade entre donos de garimpos e DTVMs. Pelo menos três empresas (F D’Gold, Carol e Ourominas) são alvos de ações judiciais do Ministério Público Federal por suspeita de comércio ilegal.

VIRADA DE PÁGINA

Entretanto, assim como o filme ‘Diamante de Sangue’ deixa uma mensagem de alerta contra o contrabando de pedras preciosas, um conjunto de ações articuladas entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o governo federal podem ser o início da contenção do comércio ilegal. No início de maio, por unanimidade, confirmando decisão anterior do ministro Gilmar Mendes, o STF suspendeu a Lei 12.844 (da “presunção de boa-fé”) e determinou a adoção, em 90 dias, de um novo marco normativo para a fiscalização do comércio do ouro.

A decisão foi encaminhada ao ministro da Justiça, Flávio Dino,  que a elaborou sob a forma de medida provisória (MP do Ouro). Após assinatura do presidente Lula, o texto entra em vigor e é encaminhado ao Congresso Nacional para votação em até quatro meses. Uma vez aprovado, será sancionado em forma de lei. No fim de março, a Receita Federal havia determinado a obrigatoriedade da NF-e na compra de ouro pelas DTVMs, a partir do dia 3 de julho, admitindo que o sistema até então vigente dificultava a fiscalização por parte do Bacen e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

“A solução ideal é a rastreabilidade física e digital de todas as etapas da cadeia, desde a extração, passando pela venda às DTVMs e pela venda para o mercado externo ou para as joalherias.” Frederico Bedran, sócio do escritório Caputo, Bastos e Serra Advogados e ex-diretor de Geologia e Produção Mineral do Ministério de Minas e Energia

Para o advogado e geólogo Frederico Bedran, sócio do escritório Caputo, Bastos e Serra Advogados e ex-diretor de Geologia e Produção Mineral do Ministério de Minas e Energia, as medidas são positivas, mas insuficientes. “A solução ideal é a rastreabilidade física e digital de todas as etapas da cadeia, desde a extração, passando pela venda às DTVMs e pela comercialização para o mercado externo, para transformação em barras, ou para as joalherias no mercado interno. Os mecanismos de fiscalização devem ser semelhantes aos aplicados no tráfico de drogas e no contrabando de cigarros”, sugere.

Com o objetivo de coibir a lavagem de dinheiro, a Suíça implantou um sistema de marcação nas barras com uma tinta especial, similar às usadas em notas de papel. Segundo Bedran, há estudos avançados de uma tecnologia que permite a identificação do DNA do ouro, capaz de saber a exata localização da jazida onde foi extraído.

Para Juliana Siqueira Gay, gerente de Projetos do Instituto Escolhas, algumas medidas já poderiam ser adotadas em curto prazo, como a exigência de uma guia de custódia no trajeto do ouro entre a jazida e a DTVM, a exemplo do que é feito no transporte da madeira. “É preciso também aumentar a fiscalização, principalmente em relação aos ‘títulos-fantasmas’ de lavras garimpeiras”, diz, citando o caso de títulos de permissão válidos para áreas estéreis apresentados para legalizar o ouro extraído em terras indígenas, método usado para lavagem de dinheiro.  

A partir do episódio revelando a invasão das terras ianomâmi por garimpeiros, o ICMBio recebeu o suporte de uma frota de helicópteros para autuações em garimpos ilegais. “Já desmantelamos 40 garimpos em expedições formadas por servidores e forças policiais”, afirma Russo. Até o fim do ano passado, as únicas alternativas eram por vias terrestre e fluvial, o que facilitava a fuga dos garimpeiros. Hoje, o ICMbio conta com cerca de mil agentes de fiscalização, e novos 40 funcionários aprovados em concurso devem ser integrados nos próximos meses.

Guilherme Meirelles Maria Fernanda Gama
Guilherme Meirelles Maria Fernanda Gama