Pequeno progresso, grandes tropeços

24 de outubro de 2024

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Ao longo de mais de quatro anos, o PNE 2014–2024 foi desenvolvido de forma participativa, com contribuições de diversos segmentos da sociedade, adotando uma abordagem mais humanizada, inclusiva e cidadã. Oficialmente com o peso de lei, oferecia proposta expansionista para que o sistema de ensino fosse, de fato, universalizado. Pela primeira vez, por exemplo, a educação infantil passou a ser tratada como um direito da criança — até então, a garantia contemplava apenas o fundamental. Além de universalizar o atendimento, o plano, com o intuito de melhorar a qualidade, tratou de temas como formação de professores, acesso ao ensino superior e financiamento. 

Dez anos depois, chega o primeiro balanço de como a educação brasileira absorveu esses preceitos. Infelizmente, sem surpresa, a lei não foi cumprida. No entanto, embora o Brasil tenha fracassado, na última década, em atingir esses objetivos, especialistas em política educacional ouvidos pela Problemas Brasileiros defendem que a existência dessas diretrizes, por si só, seja um avanço importante, pois serve de bússola e roteiro para os esforços na área. “O PNE estabeleceu objetivos bem específicos, deu um norte para promover equidade e qualidade, um ponto para onde deveriam seguir os projetos, independentemente de governos”, avalia Manoela Miranda, gerente de Políticas Educacionais do movimento Todos Pela Educação

Outra organização que se debruça sobre o tema, a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, divulgou, em junho, um relatório apontando como se deu a evolução em cada uma das 20 metas. O documento mostra que, dentre todos os objetivos previstos na Lei 13.005/2014 — como melhorar os índices de alfabetização e universalizar a educação infantil —, apenas quatro foram atingidos ou parcialmente cumpridos. Apesar de denunciar as falhas, a organização também elogia o PNE, sobretudo pela forma como foi construído. “Para identificar os gargalos, é preciso saber aonde queremos chegar. O PNE representou um avanço na educação, principalmente por ser resultado da mobilização social. Era um sonho antigo”, explica Marcele Frossard, coordenadora da campanha.

O plano também conseguiu consolidar o papel do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), uma autarquia federal mais conhecida por elaborar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas que tem diversas atribuições ao captar e consolidar dados em território nacional. “Um ponto fundamental é o monitoramento e a avaliação, algo que tem sido feito. Desde 2014, o Inep faz análises preciosas para a educação, embora nem sempre sejam levadas em conta”, afirma Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), organização da sociedade civil que promove qualidade e equidade na educação pública. 

Elos frágeis

Para que o futuro seja melhor, um dos pontos fundamentais é entender os motivos que levaram ao descumprimento das metas. Especialistas apontam que, diante de um cenário complexo, a falta de prioridade e a descontinuidade de políticas públicas continuam como grandes entraves. Também falta dinheiro: a expansão de vagas, do infantil à pós-graduação, e o aumento de oferta em ensino integral exigem verbas adicionais que nunca chegaram. Exemplo disso é que, dois anos depois de promulgado o PNE, a chamada “emenda do teto dos gastos” limitou o crescimento das despesas do governo, inviabilizando recursos extras para o setor. “A pandemia até afetou algumas metas, sobretudo a 5 e a 7 (alfabetizar todos até o terceiro ano do fundamental e melhorar o fluxo de aprendizagem), por causa do tempo em que as escolas estiveram fechadas, mas não foi o principal”, alerta Manoela, do Todos Pela Educação. Ela afirma que bons programas de alfabetização e formação de professores foram descontinuados, ao passo que outros programas perderam apoio financeiro ao longo do tempo. E, claro, a falta de recursos segue crônica, defende a coordenadora. “Precisamos aumentar o investimento por aluno e, ao mesmo tempo, olhar para a alocação desses recursos”, defende. 

Embora o PNE não seja uma atribuição exclusiva do Ministério da Educação (MEC), a troca frequente de pessoas à frente da pasta demonstra a instabilidade nas políticas educacionais —  em dez anos de vigência, o plano contou com 12 ministros. Mais do que isso, alguns deles ignoraram a lei, promovendo ações em sentido contrário ao proposto nas metas. “Durante o governo Bolsonaro, a educação domiciliar foi considerada prioridade, algo que vai contra os princípios do PNE”, destaca Marcele, da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. “Para entender o descumprimento, temos que olhar para o contexto político-econômico, para a falta de prioridade dada a uma política prevista para passar por diferentes gestões. Três governos foram responsáveis pelo PNE. Cada gestão quer deixar a própria marca, mas todas deveriam estar de acordo com o plano.

As metas não podem simplesmente ser abandonadas”, destaca Marcele. Entre tantos propósitos não alcançados, parece difícil escolher os que mais preocupam. Um deles é a meta 2, que previa todas as crianças no ensino fundamental. “Durante a pandemia, muitas desistiram de estudar e não voltaram mais. Ao pensar nas crianças que não estão na escola, precisamos pensar onde elas estão. Sem dúvida, muitas estão em situação de risco”, afirma ela, para quem esse é mais do que um problema a alunos e suas famílias, mas a todo o País.

Isso acontece porque a escola ajuda a preparar tanto para o mercado de trabalho quanto para o exercício da cidadania. Além disso, ao falhar na alfabetização e na educação de jovens (e adultos), o Brasil mantém um contingente de pessoas à margem da sociedade. “São pessoas que, por exemplo, só usam o WhatsApp por áudio, que ficam mais vulneráveis às fake news. Todas as metas têm o seu impacto, e eu gostaria de ver o plano cumprido plenamente”, explica Marcele. 

Segundo Anna Helena, do Cenpec, fez falta ao Brasil um sistema nacional de educação semelhante ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Embora seja previsto na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e no próprio PNE, nós não temos um sistema nacional de ensino para distribuir as responsabilidades dos municípios, dos Estados e da União, inclusive com repasse de verbas um apoio técnico”, afirma. Portanto, não são medidas ou projetos isolados que vão melhorar a situação. É preciso uma engrenagem com todas as peças em funcionamento em ações articuladas entre os envolvidos. “A falta de um sistema integrado afeta até questões simples, como o transporte escolar. Por exemplo, crianças na zona rural de um município têm ônibus da rede estadual e outro da municipal, quando as redes poderiam colaborar entre si”, sugere.

Sonho antigo, novo PNE

O atual plano venceu em junho, mas teve a validade ampliada até o fim do ano. Ao mesmo tempo que veio a público o balanço do PNE 2014–2024, o governo federal encaminhou ao Congresso o plano para os próximos dez anos, que deve entrar em vigor em 2025. O Projeto de Lei (PL) foi elaborado pelo MEC a partir de debates com sociedade e representantes de Congresso Nacional, Estados, municípios e conselhos de educação, além das propostas da Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em janeiro. 

Segundo o ministro Camilo Santana, o texto está mais “objetivo” que a versão anterior. O documento que o Congresso precisa discutir inclui 18 objetivos, compreendendo educação infantil, alfabetização, ensinos fundamental e médio, educação integral, diversidade e inclusão, educações profissional e tecnológica, educação superior, estrutura e funcionamento da educação básica. Para cada objetivo, foram definidas metas que permitem o seu monitoramento. A proposta contém 58 metas, comparáveis aos 56 indicadores do plano vigente, cada uma acompanhada de um conjunto de estratégias. 

Ainda que alguns dos objetivos pareçam repetir certas metas descumpridas, há novidades, como um objetivo de qualidade para a educação infantil — no PNE anterior, só se pedia acesso. Há também pequenos ajustes: se na versão anterior, as crianças tinham de estar alfabetizadas no terceiro ano, agora, o texto pede que seja no segundo. Além disso, as metas de valorização e formação dos professores da educação básica foram sintetizadas em apenas um objetivo, enquanto a parte que previa aumento de investimento em educação para 10% do Produto Interno Bruto (PIB) foi retirada. 

Há ainda uma alteração que reflete novas necessidades dos tempos atuais, com a criação de um método que prevê uma “educação digital para o uso crítico, reflexivo e ético das tecnologias”. Contudo, talvez a principal mudança seja que expressões como “inclusão”, “equidade” e “redução de desigualdades” passaram a ser incluídas na redação do plano. O objetivo que trata de aumentar o contingente de doutores e mestres traz, agora, de forma explícita que isso seja feito “de forma equitativa e inclusiva”.

Ficou determinado também que a qualidade deve ser garantida nas educações indígena, rural e quilombola. A importância dada à equidade parece auspiciosa para as especialistas no tema. “Temos de lembrar que nós vivemos num país muito injusto, com desigualdades territoriais, de nível socioeconômico e de raça e cor. São os alunos mais pobres, negros, indígenas e com deficiência os mais excluídos do sistema educacional e que apresentam os piores resultados de aprendizagem”, ressalta Anna Helena. 

Não faltam dados que comprovem as discrepâncias nacionais — e, às vezes, regionais. No Amapá, apenas 8% das crianças de 0 a 3 anos estão na creche; em São Paulo, são 45%, número bem próximo ao da meta dos 50%. E há também diferenças de acordo com o perfil socioeconômico. Dentre as famílias do quartil com maior renda, 95% dos jovens de 16 anos concluíram o ensino fundamental; já no de menor renda, a taxa fica em 75%, são 20 pontos porcentuais de diferença. “O foco nas desigualdades é uma inovação relevante, que sinaliza para um bom caminho. Também é interessante que o novo documento não atenha apenas aos resultados, mas que considere os insumos e os processos”, elogia a superintendente do Cenpec. Por enquanto, porém, ainda é preciso esperar a versão final do Congresso. 

No momento, a pressão social deve se manter para que a educação não fique relegada a segundo plano, tampouco que seja usada como moeda de troca política. Segundo Anna Helena, a educação não é assunto exclusivo das famílias com filhos na escola, por isso, à medida que a população tiver mais clareza sobre a importância do PNE, haverá ainda mais probabilidades de esse plano se tornar realidade. O Brasil tem uma nova chance para, desta vez, levar a sério as propostas para oferecer a educação que o País merece.

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #483 (OUT/NOV) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

LUCIANA ALVAREZ Annima de Mattos
LUCIANA ALVAREZ Annima de Mattos