Inseguras para ir e vir

21 de outubro de 2024

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Na cidade de São Paulo, a discussão sobre violência contra as mulheres gira em torno de um caso: a acusação de que o atual prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes, do MDB, agrediu a esposa em 2015, quando um boletim de ocorrência foi registrado. Enquanto os candidatos trocam acusações — e deixam o tema principal escanteado —, 86% das moradoras do município sentem medo de sofrer algum tipo de violência durante deslocamentos pela cidade. No Brasil, esse porcentual chega a 97%.

Um dado ainda mais preocupante é o de mulheres que já sofreram violência enquanto andavam pela cidade: 70% passaram por essa experiência. A maioria estava a pé ou no ônibus. E o problema, segundo elas, é a ausência de políticas públicas. Os dados são de uma pesquisa realizada pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão com 4 mil mulheres de diferentes capitais. O estudo também revela que 9 entre 10 mulheres opinam que o tema deveria ser prioridade nas eleições municipais.

Não que a segurança das mulheres passe batido nos programas de governo dos dois candidatos que disputam a prefeitura da maior cidade do País, Nunes e Guilherme Boulos (Psol). Enquanto o psolista propõe aumentar a patrulha Maria da Penha, que atende mulheres vítimas de violência com medida protetiva, o atual prefeito promete dar “atenção especial para projetos de caminhabilidade, que favoreçam de forma segura a circulação de idosos, crianças e mulheres”.

De certa forma, ambos atendem a algumas necessidades das mulheres apontadas pelo estudo do Locomotiva. Segundo a pesquisa, 67% das entrevistadas acreditam que o aumento de policiamento é uma das medidas para evitar a violência contra elas durante os trajetos. Outras 74% mencionam a melhoria da iluminação, e 71% a necessidade de revitalização de espaços públicos — o que parece se encaixar nos “projetos de caminhabilidade”. “A segurança dessas pessoas, que é o foco da nossa pesquisa, parece ficar em segundo plano. As candidaturas tratam a questão como se homens e mulheres fossem vítimas de violência da mesma forma, mas elas passam por situações muito relativas, que eles não passam”, diz a socióloga Maíra Machado, diretora de Pesquisa do Locomotiva.

A pesquisa mostra ainda que 66% das brasileiras têm medo de sofrer um estupro, assalto, furto ou sequestro relâmpago. E 58% temem passar por algum tipo de assédio ou importunação sexual. O temor não é infundado. No dia 14 de outubro, uma jovem de 28 anos foi vítima de uma tentativa de estupro ao fazer uma viagem por carro de aplicativo entre Bragança Paulista, no interior do Estado de São Paulo, e São Matheus, na zona leste da capital paulista. Segundo a jovem, ela viajava com uma amiga quando, ao deixar a primeira passageira em Guaianases, o motorista da 99 começou a fazer investidas abusivas e elogios a ela, solicitando que fosse para o banco da frente. A vítima escapou saltando do carro e, felizmente, teve apenas ferimentos leves.

Ônibus, trem e metrô são os meios de transporte em que as mulheres se sentem menos seguras, como também andar a pé. O carro particular é apontado como o meio mais seguro, e o carro por aplicativo como mais seguro para mulheres do que o transporte público. Por outro lado, o ônibus é visto como o meio mais fácil para denunciar crimes como importunação sexual, assédio e estupro, bem como aquele com maior chance de punição para o agressor, seguido de carro por aplicativo.

Além do gênero, existem ainda recortes de classe e raça na questão — a maioria das mulheres que temem pela própria segurança na rua ou no transporte público é preta. Mais mulheres negras (57%) do que não negras (45%) declaram que se sentem inseguras quando se deslocam de ônibus, assim como quando estão no trem. “Existe um reconhecimento de que gênero e raça, alinhados a renda e vulnerabilidade social, são muito determinantes em como as pessoas experimentam os deslocamentos”, explica Jéssica Tavares, especialista em políticas públicas voltadas para os temas de gênero, raça e direitos urbanos. São as mulheres negras e pobres que mais se movimentam pela cidade a pé ou de ônibus.

Ciclo a ser quebrado

As respostas das mulheres entregam os caminhos de como romper o ciclo de violência e o temor que as atingem. Elas afirmam que a ausência de policiamento, a falta de iluminação pública, ruas desertas e vazias e espaços públicos abandonados são os maiores fatores de insegurança. Além desses tópicos, cerca de 70% concordam que a situação melhoraria se houvesse mais campanhas para incentivar denúncias, apoio imediato às vítimas, ampliação dos canais de denúncia, mais oferta de linhas e pontos de ônibus, mais policiamento, avanço nas investigações e aumento das penas para violência contra as mulheres.

De acordo com Maíra, do Locomotiva, é importante ter mais canais de denúncias e de acolhimento das vítimas. “Nem sempre elas têm onde relatar, então, não denunciam, e as situações acabam sendo normalizadas. As campanhas precisam acontecer, não pode ser normal uma mulher ser assediada”, afirma. Ela defende, também, que as investigações prossigam, não sejam arquivadas. “É importante que seja pensado que o espaço abandonado é sinônimo de medo. Passar por um terreno baldio ou uma praça com mato aumenta a sensação de insegurança.”

Jéssica, por sua vez, salienta que não adianta pensar em soluções mágicas, como o teleférico proposto por um candidato a prefeito (que não chegou ao segundo turno), tampouco em copiar ideias de outras cidades. “É preciso, primeiro, reconhecer que as pessoas experimentam diferentes formas de deslocamento, as quais estão muito atreladas a raça, classe e gênero. Então, antes de tudo, é preciso ter um reconhecimento. Depois, entender que não há uma resposta única para todas as cidades, é necessário ver a especificidade de cada uma”, diz.

O que tem sido feito

Na capital do Rio de Janeiro, desde 2016, nos horários de pico, alguns vagões de trens e metrô são de uso exclusivo das mulheres. A medida foi aprovada por decreto estadual, e os infratores podem receber multa de R$ 200 a R$ 1,1 mil, dependendo do caso e da reincidência. Jéssica lembra que, quando o vagão rosa estava sendo implementado, havia uma discussão sobre se essa política cumpria um papel de educar ou apenas isolaria um problema. “A verdade é que, pelos relatos das mulheres, isso ajudou. Essa deliberação cumpriu o seu papel: assegurou que essas pessoas não deixem de se deslocar, de ir ao trabalho, por medo do transporte público”, afirma. “É uma boa política, mas também um bom exemplo de que não adianta apenas uma ação. O vagão rosa não dá conta de todas as outras questões para garantir a segurança das mulheres”, completa.

É importante pensar na cidade como um todo, como aponta a especialista e a pesquisa — nos trajetos a pé, de ônibus e na própria infraestrutura de cada cidade. Jéssica cita também a importância educativa das campanhas contra o assédio e da ampliação de canais de denúncia na capital paulista. “Sempre há críticas: ‘Ah, mas de que adianta um número para denunciar?’. É verdade. Mas é um trabalho de educação que mostra que espaços coletivos não são tolerantes a isso”, completa a especialista.

Na esfera federal, a Câmara dos Deputados aprovou, em abril deste ano, um projeto de lei batizado de “ponto guarnecido”. Pela nova legislação, o Poder Público deve fazer um levantamento sobre os pontos de ônibus em áreas de maior risco. Em cada um desses locais, deverão ser instalados equipamentos de monitoração e comunicação para que, em caso de ameaça, um agente de segurança possa ser acionado.

Carol Castro Débora Faria
Carol Castro Débora Faria