Artigo

As apostas, o endividamento e o papel do Estado

Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Graziella Testa
é professora da Fundação Getulio Vargas, na Escola de Políticas Públicas e Governo (FGV-EPPG), e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Após uma decisão, em 2018, da Suprema Corte dos Estados Unidos, 38 Estados legalizaram as apostas esportivas. Anos depois, pesquisadores da Califórnia estudaram como essa política impactou a saúde financeira da população, com base na implementação estadual da legalização dessas práticas e num abrangente conjunto de dados sobre resultados financeiros dos consumidores.

A principal descoberta dos autores é que, em geral, a saúde financeira dessas pessoas se deteriorou após a decisão. A pontuação média de crédito nos Estados em que esses jogos foram legalizados diminui em aproximadamente 0,3%. Essa queda está associada a mudanças nos indicadores de dívida excessiva. Foram apontados, ainda, um aumento substancial nas taxas de falência, cobranças de dívidas, empréstimos para consolidação de dívidas e inadimplências em empréstimos para automóveis. Os pesquisadores ainda apontam que as instituições financeiras responderam à redução da solvência dos consumidores restringindo o acesso ao crédito. 

Os resultados são mais fortes nos Estados que permitem apostas esportivas online em comparação aqueles que restringem o acesso às apostas presenciais. Talvez o mais relevante apontado pelos autores tenha sido o de que os impactos negativos à saúde financeira dos cidadãos foram maiores para homens jovens em condados de baixa renda. Os pesquisadores concluem que os números indicam que a facilidade de acesso às apostas esportivas está prejudicando a saúde financeira dos consumidores ao torná-los mais endividados. Embora muitos Estados possam ter optado pela legalização na esperança de aumentar a receita tributária, o impacto indesejável documentado pode, parcialmente, anular os benefícios da receita tributária à medida que a saúde financeira de mais pessoas se deteriora.

No Brasil, não há pesquisas relevantes que cheguem a apontar causalidade, mas já existem algumas estatísticas descritivas que ajudam a desenhar o quadro. Dados do Banco Central (BC) mostram que os brasileiros gastaram mais de R$ 50 bilhões em jogos e apostas esportivas só no ano passado. Por volta de 70% desse valor retornaram ao País em prêmios para apostadores. Quando questionados, 15% dessas pessoas admitem que fazem ou já fizeram apostas esportivas online. Entre os mais jovens, com idades entre 16 e 24 anos, esse número é de 30%. Homens apostam mais do que mulheres, 21% deles já apostaram, enquanto entre as mulheres, apenas 9%. Os apostadores recorrentes gastam, em média, R$ 363 por mês. A mesma pesquisa, do Datafolha, indica que 17% dos beneficiários do programa Bolsa Família fazem ou fizeram alguma aposta, dos quais quase 60% gastam mais de R$ 50 por mês nesses jogos. 

Isso tudo foi possível graças a uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada por Michel Temer, também em 2018. A norma previa uma regulamentação em quatro anos — o que não aconteceu durante o governo de Jair Bolsonaro. Somente em 24 de maio deste ano que o Ministério da Fazenda estabeleceu o conjunto de regras para a atuação das empresas no Brasil, na expectativa de arrecadar R$ 1,6 bilhão. A taxa estabelecida considerou as apostas esportivas menos danosas do que as na Mega-Sena — ou do que o consumo de cigarro e bebidas alcoólicas —, uma vez que estabeleceu impostos mais baixos para aquelas. A primeira regulamentação da Reforma Tributária (PLP 68/2024) também prevê a inclusão das apostas no hall de impostos seletivos, junto com itens como bebidas alcoólicas e açucaradas, cigarros e loterias. O projeto, que está atualmente no Senado, ainda não estabelece alíquotas, as quais serão regulamentadas em um futuro Projeto de Lei (PL). 

Se podemos aprender algo da experiência norte-americana e do mais recente estudo sobre o tema é que os ganhos tributários advindos da taxação das apostas de cota fixa não justificam os danos causados aos cidadãos. No que pese a importância de uma iniciativa de renegociação de dívidas da população mais pobre, como foi o Desenrola, é preciso entender o quanto do alto endividamento do brasileiro foi consequência da pandemia e quanto foi resultado de apostas online. É preciso também repensar os critérios para a concessão de empréstimos a fim de evitar novos fluxos de superendividamento que transfiram os custos ao erário público.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.