Além da influência do envelhecimento, o número de pessoas que recebem o diagnóstico de algum tipo de demência, entre elas o Alzheimer, também é determinado por fatores socioeconômicos. Estudos recentes mostram que a incidência de Alzheimer é maior entre os que apresentam menor renda e escolaridade.
Aos 70 anos, Maria da Conceição Rodrigues de Souza — recentemente internada no Hospital Regional de Samambaia (HRSam), em Brasília, no Distrito Federal — convive com o diagnóstico de Alzheimer desde 2018. Ao seu lado, está o filho, Osíris, 44 anos, que levou a mãe para morar consigo três anos antes do diagnóstico. Maria estudou só até o período equivalente, hoje, ao quarto ano do ensino fundamental e trabalhou sempre com altas cargas horárias e baixa remuneração. Osíris acredita que a pouca escolaridade e o acúmulo de sofrimento laboral pode ter agravado os problemas de saúde mental da mãe.
O perfil de Maria insere-se no contexto de pesquisas recentes, que apontam que baixa renda e menor grau de escolaridade são fatores associados ao desenvolvimento de diversos tipos de demência, incluindo Alzheimer. Um estudo — publicado em fevereiro deste ano na revista científica The Lancet Global Health, liderado pelo pesquisador Eduardo Zimmer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — mostra que a baixa escolaridade é o principal fator de risco para o declínio cognitivo. O trabalho demonstrou que as disparidades social e de saúde são preditoras relevantes para um envelhecimento cerebral saudável na América Latina.
Cláudia Suemoto, coautora do estudo, explica que, durante a primeira infância e a adolescência, há maior neuroplasticidade e, com isso, mais capacidade de comunicação entre os neurônios. Nesse período, boa parte do estímulo cognitivo vem da educação escolar. “Faz-se necessária uma política pública que estimule não apenas uma maior adesão à escolaridade, mas que também mantenha as pessoas na escola, com uma educação de qualidade”, afirma a médica e professora associada da disciplina de Geriatria na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Quanto à adesão ao ambiente escolar, a médica geriatra Celene Queiroz Pinheiro de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), chama a atenção para outro aspecto: a violência urbana. Segundo ela, o convívio com a insegurança, maior em algumas comunidades, faz com que, por exemplo, crianças que morem em locais onde haja conflitos percam cerca de dois meses de aulas por ano. A constante tensão também gera consequências incomensuráveis na saúde mental.
Outra pesquisa — publicada em dezembro de 2024 na revista científica especializada no estudo do envelhecimento Nature Aging, com participação de pesquisadores brasileiros — analisou o quanto as distribuições desiguais de renda e de oportunidades influenciam no envelhecimento e na demência. Foram avaliados 2.135 participantes — pessoas saudáveis, para o grupo de controle, e pacientes com Alzheimer — da América Latina e dos Estados Unidos. Os autores concluíram que uma maior desigualdade estrutural foi associada a reduções do volume e da conectividade cerebral, com efeitos mais fortes na América Latina quando comparados com o país norte-americano.
Dentre os autores desse estudo, está a médica neurologista Elisa de Paula França Resende, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Ela relata que se um indivíduo vive em um local com grande desigualdade de renda, o acesso a escolas de qualidade, a nutrição e os cuidados com a saúde em geral são piores, a exemplo de patologias comuns como diabetes, hipertensão e depressão. Há, ainda, menos oportunidade para a prática de exercícios físicos e a correção de problemas de audição e visão, que também afetam a cognição. “O baixo nível educacional é um importante fator de risco para o Alzheimer, porque leva a uma menor reserva cerebral, de forma que, quando a doença atinge o cérebro, há menor volume para ser perdido e os sintomas ocorrem mais cedo”, explica.
Ainda de acordo com a especialista, a hipertensão, a depressão e o diabetes não tratados também contribuem para o aparecimento do Alzheimer, porque levam a microlesões cerebrais que, ao longo dos anos, reduzem o número de conexões neurais, atrofiando áreas do tecido cerebral e elevando a vulnerabilidade à doença. Assim como a falta de exercícios físicos agrava doenças crônicas comuns, a privação sensorial ocasionada por baixa audição ou visão também aumenta o risco de demência. “Entendemos, portanto, que as desigualdades econômicas estão associadas a um pior controle de problemas de saúde que são fatores de risco para a doença de Alzheimer e a uma menor reserva cerebral”, acrescenta Elisa.
Na avaliação de Cláudia, da FMUSP, é necessário que haja um controle e um diagnóstico mais eficientes dos fatores de risco para doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes e dislipidemia (níveis elevados de colesterol e/ou triglicerídeos no sangue). Além disso, é fundamental, reforça a especialista, estimular um estilo de vida saudável, como praticar atividades físicas e ter uma alimentação equilibrada, o que contribui para a diminuição da obesidade, além de não fumar e não consumir bebida alcoólica em excesso.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), atualmente, mais de 55 milhões de pessoas têm demência no mundo — e mais de 60% delas vivem em países de baixa e média rendas, com 10 milhões de novos casos diagnosticados por ano. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência, respondendo por 70% dos casos. A demência é a sétima principal causa de morte e um dos principais fatores de incapacidade e dependência entre idosos em todo o mundo, aponta, ainda, a OMS.
Com o envelhecimento e o empobrecimento dos idosos, a expectativa é que se amplie o impacto do Alzheimer entre os brasileiros. Jorge Félix, professor no curso de Gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) e pesquisador de pós-doutorado no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em Paris, França, contextualiza que a economia brasileira tem apresentado uma crônica instabilidade. “Não como no passado, com inflação alta. Mas principalmente pelas altas taxas de juros, fruto de uma política de austeridade fiscal”, afirma.
Félix detalha que esse cenário afeta a vida da população idosa por impedir o planejamento em médio e longo prazos e por reduzir a renda. “Quem paga pela austeridade é a população, sobretudo aquela que necessita e usa serviços públicos de Saúde e Educação. As reformas na Previdência Social resultaram em aumento do porcentual de aposentados que recebem um salário mínimo, que pulou de 25%, em 1998, para 65%, atualmente. Isto é, grande parte da população idosa brasileira, embora com cobertura previdenciária, tem uma renda baixa e cada vez mais reduzida”, ressalta.
A naturalização do esquecimento na velhice é um fator que gera estigma e atrasa o diagnóstico das demências. De acordo com Celene, da ABRAz, muitas pessoas ainda acreditam que esquecer é natural e que podem dispensar a busca por atendimento médico. E, aqui, renda e saúde se entrelaçam mais uma vez: segundo a médica, quanto menores os níveis de escolaridade e de acesso à informação, maior o estigma. “Quem tem acesso a serviços de saúde de melhor qualidade consegue um acompanhamento adequado ao longo da vida. Já a pessoa com baixo poder aquisitivo tem dificuldade de se consultar regularmente. Ao manifestar queixas cognitivas, não consegue diagnóstico, pois há demora para passar por especialistas e fazer exames”, enfatiza. É o caso de Maria da Conceição, que só conseguiu atendimento com um neurologista em fevereiro de 2025, após dois anos de espera e já com o diagnóstico de Alzheimer em mãos, como conta o filho.
Celene observa também que aqueles que têm acesso a profissionais particulares acabam conseguindo, além de um diagnóstico mais precoce e assertivo, orientações de qualidade para o manejo das demências, bem como suporte emocional aos cuidadores. Por outro lado, acrescenta, nas comunidades vulneráveis, as consequências para os cuidadores são imensas: não há qualquer apoio, emocional ou prático. Não existe sequer revezamento no cuidado. “Ficam sobrecarregados, precisam abandonar o mercado de trabalho e se veem sem reconhecimento ou arrimo previdenciário”, salienta.
Além de pesquisador na área de Economia do Envelhecimento, Félix, da EACH/USP, é idealizador do documentário Alzheimer na periferia, de 2019, que retrata a vida de cinco idosos de bairros mais distantes do centro de São Paulo que sofrem da doença degenerativa, além de mostrar suas dinâmicas familiares e suas relações com a cidade. Ele alerta que o fato de o cuidado de longa duração estar excessivamente com a família, sem a devida responsabilidade do Estado, resulta num crônico endividamento das pessoas idosas e seus familiares. “Os custos da responsabilidade com o outro, incluindo a dificuldade de retirar medicamentos de uso contínuo e fraldas geriátricas no Sistema Único de Saúde (SUS), têm levado ao endividamento. É o fenômeno de morrer endividado”, aponta.
Esse aspecto é reforçado pela neurologista Elisa, ao pontuar que a implantação de programas com esse propósito, que incluam a ajuda de grupos de apoio e o suprimento de fraldas e outros insumos, seria fundamental para reduzir a sobrecarga financeira dos cuidadores e, consequentemente, dos idosos sob cuidado. “Os cuidadores têm de deixar seus empregos para se dedicar ao enfermo. Diante da evolução do Alzheimer, o paciente torna-se cada vez mais dependente. Com isso, a atenção passa a ser de 24 horas”, contextualiza.
Segundo Félix, é um grande equívoco associar a dificuldade de custear a saúde na velhice com uma possível falta de educação financeira. Ele observa que essa é uma questão que engloba salários muito baixos durante o período laboral, desemprego, benefício de aposentadoria baixo e problemas com moradia. Esse quadro, reforça o pesquisador, impede qualquer tipo de planejamento para um evento não esperado, como o Alzheimer e outras doenças crônicas, cada vez mais incidentes na transição epidemiológica provocada pelo envelhecimento da população. “Não existe educação financeira que dê respostas para a falta de renda para comer. Infelizmente, o que constato entre as pessoas idosas endividadas é que o problema passa longe de qualquer tipo de educação financeira”, lamenta.
O especialista conclui que, mesmo quando a família está por perto e quer amparar, é muito difícil dar conta, porque é preciso trabalhar e ter renda. Além disso, o trabalho de cuidador, sempre sem o devido reconhecimento, impede, principalmente as mulheres, de seguirem com uma vida profissional e de estudos. Essa renúncia é sentida no mercado laboral no Brasil e tende a se agravar com o envelhecimento da população em ritmo acelerado.