O arquivo de Alceu Amoroso Lima — preservado no Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (Caall), localizado em sua antiga residência em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro — é rico em documentação e memória da literatura brasileira. Nele, dentre tantos documentos ainda inéditos, encontra-se uma carta do poeta João Cabral de Melo Neto, com um reconhecimento ao crítico, por causa de uma interpretação deste em relação à poesia cabralina. Trata-se de um pequeno texto que Alceu escreveu, em 1956, no encarte do LP Murilo Mendes & João Cabral de Melo Neto (Coleção Poesia, Festa Discos, V.10), do qual retiro esta passagem:
“O que encontramos na poesia de Murilo Mendes como na de João Cabral é a mesma sobriedade incisiva, a mesma graça hieroglífica, a mesma concisão cristalina, um senso parecido de ‘humor’, a mesma predominância dos metais sobre as cordas, em oposição ao que encontramos na estilística, mesmo dos mais modernos ‘românticos’. Em ambos a mesma dureza penetrante, que João Cabral exprime tão bem no seu último e admirável poema Uma faca só lâmina, agreste e inesquecível como uma página de Graciliano Ramos e certos poemas da Poesia em pânico de Murilo. Mas entre Murilo e João Cabral há esta outra diferença: naquele a constante presença de Deus, na aridez dos desertos humanos: neste a ‘ausência’ que nem a ‘bola’, nem o ‘relógio’, nem a ‘faca’, os três símbolos de sua poética máscula, ascética e inflexível conseguem substituir”.
Em outros textos de opinião, Alceu — conhecido também pelo pseudônimo Tristão de Athayde — sempre aponta essa dimensão cortante e seca da poesia de João Cabral, chegando a considerá-lo um “clássico dentro do nosso modernismo”. Certamente, essa autópsia encantou o poeta, levando-o a dizer, na sua carta, que Alceu fez uma análise “precisa”, “uma lúcida compreensão do que pode ser o sentido de um poema”.
A atividade opinativa de Alceu foi muito intensa nas décadas de 1920 a 1940, o que levou outro crítico literário, Agripino Grieco, a chamar o velho mestre de “papa da crítica brasileira”. Sem exagero, pode-se afirmar que Alceu criou e sustentou uma avaliação modernista ao longo desse período, reconhecendo e divulgando novos escritores — e, também, os antigos, pois ele conciliava bem a tradição e a vanguarda.
É o caso de João Cabral, que, nesse período da escrita de Alceu, era visto como a principal vanguarda da poesia brasileira. Pode-se dizer que Cabral foi um verdadeiro choque quando da sua aparição na literatura nacional, já que trouxe um lirismo seco, sem adjetivação inútil, sem adulações poéticas, fazendo do verso uma espécie de lâmina cortante, sempre afiada dos pontos de vista existencial e social. Isto é, Alceu sentiu em Cabral uma nova proposta de poesia deveras diferente daquela que ele, Alceu, ajudou a analisar e divulgar no início da década de 1920.
Em sentido contrário, Cabral lembra do ceticismo de Mário de Andrade em relação à análise de Alceu. Escrevendo para Drummond, em 16 de outubro de 1925, Mário afirmou: “Estou meio me convencendo que o Tristão não tem nenhuma sensibilidade ou quase nenhuma pra compreender versos. Não compreende nada do conteúdo essencial da poesia”. Essa opinião foi compartilhada com outros poetas da época, bem como defendida em alguns dos seus textos. Anos depois, em 17 de junho de 1943, Mário reconciliou-se com Alceu, escrevendo-lhe: “Meu caro Tristão, tem um motivo principal esta resposta, aliás. É me penitenciar duma frase que perdeu o sentido. É quando afirmei que V., seguindo a tradição da crítica nacional, sofria de incompreensão de poesia”.
Fazendo memória do modernismo literário brasileiro, cartas e outros materiais de arquivo ajudam-nos na compreensão das relações — sempre tensas — presentes nesse complexo processo de criação. Por isso, urge uma valorização desses arquivos e de outras instâncias e instituições de salvaguarda documental, com especial atenção às correspondências e aos diários íntimos de escritores e artistas, pois estes podem suscitar análises que nos ajudem a compreender a complexidade do modernismo na literatura, abrindo espaço para novas ressignificações e obrigando, necessariamente, a uma (re)avaliação do nosso cânone literário.
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