No dia 8 de janeiro de 2023, Brasília viveu um pesadelo democrático. Milhares de manifestantes invadiram as sedes dos três Poderes, quebraram vidraças, depredaram obras de arte e ocuparam espaços simbólicos do Estado brasileiro. O episódio não foi apenas vandalismo: tratou-se da encenação de uma tentativa de golpe, em que a violência contra o patrimônio se confundiu com a violência contra a Constituição. O Congresso transformado em trincheira, o Supremo em alvo de fúria e o Palácio do Planalto tomado como troféu revelaram que parte da sociedade não aceitava a alternância de poder definida nas urnas.
Mais de sessenta anos após o último golpe que interrompeu a democracia, o Brasil assiste ao julgamento do “núcleo crucial” que teria conduzido essa nova tentativa de ruptura democrática. Em 1964, um golpe militar inaugurou uma fase longa e sombria da política brasileira. Mas não foi a primeira vez: a ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, já havia concentrado poderes, censurado a imprensa, perseguido opositores e extinguido partidos. Ainda assim, Getúlio Vargas entrou para a memória coletiva mais por seus feitos trabalhistas do que por sua face autoritária.
O retorno da democracia em 1946 abriu um período de quase vinte anos em que o Congresso ganhou peso e os partidos se multiplicaram. Foi um tempo de intensificação ideológica e de fragmentação. Wandeley Guilherme dos Santos, em sua interpretação seminal, viu nessas duas variáveis a chave para entender a fragilidade do regime e o sucesso do golpe de 1964. Um sistema partidário incapaz de produzir consensos, aliado à radicalização dos discursos, gerou o ambiente propício para a interrupção autoritária.
Décadas mais tarde, autores que analisaram a Constituição de 1988 identificaram riscos semelhantes. O novo arranjo institucional fortaleceu o Executivo, com prerrogativas como o poder de agenda, as medidas provisórias e o controle do orçamento. Essas ferramentas, ainda que concentradas, traziam estabilidade a um sistema fragmentado. Com o tempo, no entanto, foram sendo reduzidas, abrindo espaço para uma nova configuração de desequilíbrios.
O alerta de Santos permanece atual: democracias podem ruir não apenas pela força das armas, mas pela engrenagem que as sustenta. A fragmentação partidária e a radicalização ideológica tornam o Congresso um espaço quase ingovernável. O pluralismo, vital para a representação, transforma-se em paralisia quando não há mecanismos de coordenação. O Executivo, pressionado, passa a agir de forma unilateral. Seja pela caneta das medidas provisórias, seja pela manipulação orçamentária, reforça-se a percepção de abuso, corroendo a legitimidade das regras do jogo.
O Brasil de 2023, contudo, apresenta um elemento novo: a centralidade do Judiciário. Em 1964, sua presença foi discreta. Hoje, é ele quem se impõe como protagonista na contenção da ameaça antidemocrática. O Supremo Tribunal Federal, em especial, assumiu um papel de guardião ativo, ocupando o espaço que o Legislativo deveria desempenhar como contrapeso.
Não se trata, no entanto, da solução mais adequada. Dentro da lógica republicana, cabe ao Parlamento, instância da representação popular, moderar excessos e definir limites ao poder. Quando o Judiciário ocupa esse espaço, revela-se não apenas a força da Corte, mas a inércia do Congresso. Ao mesmo tempo, a existência desse ator impede que o sistema fique sem defesas. Se não é o contrapeso ideal, é ao menos uma contenção eficaz. Melhor que haja quem freie a sanha antidemocrática do que o vazio institucional que abre portas para novas rupturas.
Assim, o Brasil se vê diante de um paradoxo: suas instituições são testadas ao limite e, em resposta, atuam de forma assimétrica. O Congresso segue fragmentado, o Executivo perde parte de sua capacidade de coordenação e o Judiciário ocupa um protagonismo que não lhe é natural. O risco, já apontado por Santos, é que a democracia se perca em sua própria arquitetura. Mas o fato de ainda existirem freios, mesmo deslocados, mostra que há resistência. O 8 de janeiro foi um ataque frontal, mas também um lembrete de que as instituições, embora imperfeitas, ainda têm forças para defender o regime democrático.
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