Há 70 anos, Juscelino Kubitschek (JK) foi eleito presidente do Brasil, com um mandato que se iniciou no ano seguinte. A euforia desenvolvimentista, resumida no lema “Cinquenta anos em cinco”, fez surgir em tempo recorde uma nova capital do País e rasgou estradas de Norte a Sul e de Leste a Oeste, para que nelas transitasse o produto da recém-implantada indústria automobilística. A virada do agrário para o moderno, porém, não se resumiu aos feitos econômicos e às transformações geopolíticas.
A história do Brasil no século 20 registra uma saga de rara unanimidade, evocada até hoje pelos diferentes matizes do espectro político. No governo de JK (1956–1961), o País — até então predominantemente agrário, periférico e atrasado — começa sua vigorosa caminhada rumo à modernidade por meio do Plano de Metas, que teve a industrialização acelerada como base e a construção de Brasília como síntese.
Eternizados como “Anos Dourados”, esse período de transição e otimismo trouxe também mudanças profundas nos costumes e nas mentalidades, que resultaram em novas formas de expressão cultural — como a bossa nova, o Cinema Novo, o Teatro de Arena e o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). A conquista da primeira Copa do Mundo, em 1958, transformou o Brasil no país do futebol e craques como Pelé e Garrincha, em símbolos do orgulho nacional.
Todos esses avanços e conquistas, porém, talvez não tivessem ocorrido se uma tentativa de golpe para melar as eleições de 3 de outubro de 1955 e impedir as posses de JK e do vice-presidente eleito, João Goulart, não fosse frustrada pela espada do então ministro da Guerra, General Henrique Teixeira Lott.
O episódio nos recorda que, há 70 anos, uma parcela do espectro político decidiu ignorar a soberania popular, expressa pelo voto em eleições livres, para tentar chegar ou se manter no poder, exatamente como voltaria a ocorrer com a trama golpista que envolveu o pleito presidencial de 2022.
Desde o momento em que as urnas foram abertas, com a vitória de JK, a oposição deixou claro que estava disposta a qualquer coisa para impedir que a coligação getulista entre o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) voltasse ao poder. Carlos Lacerda, jornalista que se elegera deputado federal com grande votação pela União Democrática Nacional (UDN), deflagrou uma cruzada para impugnar a posse dos eleitos e impor ao País, com o apoio das Forças Armadas, um governo de emergência. Participava da sedição o então presidente da República, Café Filho, além de oficiais da Marinha e da Aeronáutica.
Os golpistas não contavam, porém, com a posição legalista de Lott, militar profissional com incontestável liderança no Exército, que, no dia 11 de novembro de 1955, colocou tanques na rua e provocou uma debandada geral dos que atentavam contra a democracia. Assim, em 31 de janeiro de 1956, Kubitschek chegou à presidência coroando uma carreira meteórica — deputado federal em 1934, prefeito de Belo Horizonte em 1940 e governador do Estado de Minas Gerais em 1950.
Nascido em 1902, em Diamantina, a sua mãe, a professora primária Júlia Kubitschek (de ascendência tcheca), após ficar viúva em 1905, dedicou-se exclusivamente a criar os dois filhos. O caçula, médico formado em 1927, entraria para a política pelas mãos do então interventor federal no Estado mineiro, Benedito Valadares, tornando-se o 21º presidente da República.
Com amplo mercado interno, formado à época por 60 milhões de habitantes, o Brasil era o terreno ideal para a implementação dos estudos e projetos da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que tinha o objetivo de substituir importações, por meio de investimento maciço na infraestrutura e na indústria de base e de bens de consumo duráveis, como os automóveis.
Numa época de petróleo barato, parecia fazer todo o sentido a opção pelo transporte rodoviário, que resultou na construção de 20 mil quilômetros de estradas, unindo Brasília a todo o território nacional e possibilitando a futura expansão acelerada do Agronegócio no Brasil central. A produção de petróleo saltou de 2 milhões de barris, em 1955, para 30 milhões, em 1960. No mesmo período, a produção de aço mais que dobrou, atraindo o capital estrangeiro para a instalação da indústria automobilística.
Em ritmo nunca visto, nem antes nem depois, o País industrializava-se, urbanizava-se e voltava-se para a sua imensa e secularmente esquecida porção Oeste. Para coroar essa aceleração histórica, que fazia a economia crescer na ordem de 7% ao ano, às 9h do dia 21 de abril de 1960, sob o aplauso dos cariocas, JK fechava solenemente os portões do Palácio do Catete — a então sede do Poder Executivo federal, atual Museu da República — e voava para inaugurar a Capital da Esperança, como a chamou o escritor francês André Malraux.
Construída em apenas três anos e seis meses, Brasília nasceu como uma exposição de arte a céu aberto, dispondo sobre o Plano Piloto, idealizado pelo urbanista Lúcio Costa, os principais monumentos projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer: o Palácio do Planalto, os edifícios do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), a Catedral de Brasília e o Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República.
Após passar a presidência, em 1961, para o eleito Jânio Quadros (na época, não havia reeleição), Kubitschek esperava voltar ao cargo em 1965, o que certamente aconteceria se os militares não tivessem usurpado o poder em 1964, permanecendo em regime ditatorial durante 20 anos. No auge da popularidade, o “Presidente bossa-nova” — assim caracterizado no título da música que a ele dedicou o menestrel Juca Chaves — teve os direitos políticos cassados em 1964, e até mesmo a menção ao seu nome foi proibida no rádio e na televisão.
Vítima de acidente automobilístico em 1976, seus restos mortais repousam no Memorial JK, construído em Brasília nos anos 1980. A cidade que fundou despediu-se dele com 300 mil pessoas entoando Peixe vivo, cantiga popular que se eternizou vinculada a Nonô, como Kubitschek era conhecido nas serestas da sua Diamantina.
Tombada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em dezembro de 1987, como patrimônio histórico e cultural da humanidade, a arquitetura modernista da capital brasileira seria alvo, no dia 8 de janeiro de 2023, da fúria de uma turba de vândalos que invadiu a Praça dos Três Poderes, deixando um rastro de destruição. O legado de JK — assim como a própria democracia que ele simbolizou como ninguém — sobreviveu (e sobrevive) a duras penas. Mas… até quando?