Na semana em que o ex-Presidente Jair Bolsonaro foi preso, o debate público parece sequestrado pela conjuntura, mas vou pedir licença para uma reflexão estrutural mais profunda de engenharia institucional e dos resultados na forma como a política se organiza. O nome pomposo, engenharia institucional, diz respeito ao processo em que os pesquisadores tiram conclusões sobre como determinadas regras podem refletir em como os atores vão se comportar nas arenas políticas. A um conjunto de regras, formais e/ou informais, se dá o nome de instituição, que podem também ser definidas de um jeito mais acadêmico, como as restrições humanamente concebidas que moldam a interação humana em uma sociedade, abrangendo regras formais e informais. São as regras do jogo onde os times, atores, disputam o poder.
Sabemos que as regras impactam em como o jogo é jogado. Aqueles que acompanham voleibol e aos quais já foi sugerido que adotem as lentes bifocais irão se lembrar da mudança da regra em 1998, quando teve fim a regra da vantagem – era preciso esperar que o adversário errasse duas vezes para pontuar – e a introdução do sistema de rally point, onde cada ponto jogado vale um ponto para a equipe que o conquistar. Isso tornou os jogos mais rápidos e tinha como objetivo tornar o ritmo mais atraente para a transmissão televisiva.
A partir da mudança da regra, treinadores, equipes técnicas, e jogadores se reorganizaram em torno do novo formato de incentivos. Os jogadores não precisariam de tanta resistência, já que os jogos seriam mais curtos, mas precisariam ser mais rápidos. Nosso exemplo do vôlei é um caso de mudança institucional que tem objetivo claro: acelerar a partida e torná-la mais atraente para a transmissão televisa.
Nem toda mudança institucional tem uma definição clara de juízo de valor, mas o amplo debate em torno da engenharia institucional brasileira foi uma parte dentro de um debate internacional mais amplo que sucedeu ao que se convencionou chamar de terceira onda da democratização. A onda abrange principalmente países da América Latina, África e os países que antes integravam a extinta União Soviética.
O debate em torno da engenharia institucional, à época, parecia significativo porque teria potencial de impactar na longevidade da própria democracia. Sistemas presidencialistas são menos estáveis? Sistemas eleitorais proporcionais resultam numa maior dificuldade em construir governabilidade? As respostas a estas perguntas pareciam tão importantes porque estava nas mãos dos cidadãos e dos políticos dos países recém democráticos fazem um desenho que resultasse numa democracia duradoura.
Um dos principais autores que analisaram as jovens democracias na América Latina foi o cientista político Juan Linz, que nasceu na República de Weimar e foi criado em meio à guerra civil espanhola e que conheceu bem os perigos de perder a democracia. No Brasil, esse debate se configurou em torno de um conjunto institucional que, quando reunido, se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão e teve como principal obra o Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional, livro de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi de 1999.
Entre tantas conclusões e debates fundamentais, os autores chamam atenção para o papel fundamental dos partidos políticos na resolução do dilema do excesso de atores com poder veto colocado por Sérgio Abranches, Barry Ames e outros. Se os partidos eram fracos a arena eleitoral e se os políticos tinham incentivos para brigar internamente durante as eleições, as regras internas do Congresso tornariam vantajoso agir de acordo com as orientações do partido.
O papel do Executivo e seus amplos poderes, sobretudo de agenda, parece ser a última parte da explicação do porquê a temida paralisia não ocorreu. O longo período de estabilidade parecia apontar para uma nova ordem construída em cima dos incentivos postos pela Constituição de 1988. Só que essa nova ordem deixa de explicar o sistema política pelos idos de 2013, com todo o processo de manifestações, lava-jato, eleição de um outsider para a presidência.
A obra Figueiredo Limongi nunca foi tão importante de ser estudada para construirmos uma nova forma de olhar e interpretar o conjunto institucional que foi paulatinamente mudando. O que nos falta é o entusiasmo da geração de 1990. O debate institucional daqueles tempos era motivado pela esperança das novas democracias.
Com todos os desapontamentos e problemas que, sabemos, podem ocorrer em desenhos democráticos, a opção é sempre muito pior. Some-se a isso a mudança no formato de rompimento democrático a nível internacional, como bem observa Levitsky em Como as Democracias Morrem, os processos de enfraquecimento democrático não se dão mais por bruscos rompimentos de instituições formais, mas por lentos processos de erosão de instituições informais que confirmam o espírito da norma. Cabe a nós, cientistas políticos, identificar, mapear e apontar essas mudanças.
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