Artigo

“Duas caras” e nenhuma credibilidade

Daniel Buarque
é pesquisador de Relações Internacionais no King’s College London (KCL), jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de Brazil, um país do presente.
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Daniel Buarque
é pesquisador de Relações Internacionais no King’s College London (KCL), jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de Brazil, um país do presente.

A cúpula do clima convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em 22 de abril, revelou ao mundo um Brasil de “duas caras”. Por um lado, o discurso oficial mudou, e a fala do presidente Jair Bolsonaro se alinhou ao consenso de que é necessário lutar contra o aquecimento global e proteger a Amazônia; por outro, a prática de desprezo pela ciência e pela proteção das florestas foi evidenciada pelo anúncio de cortes orçamentários para pautas ambientais. O resultado da divisão deve ser uma perda ainda maior da credibilidade de um país que caminha rapidamente rumo ao isolamento internacional.

A transformação da retórica do governo foi recebida como um aspecto positivo da participação do Brasil no encontro. Biden se referiu à promessa brasileira por mais fiscalização nas florestas como “notícias encorajadoras”. Após dois anos em que os discursos do Brasil em fóruns internacionais simplesmente negavam a destruição de partes da Amazônia e rejeitavam qualquer pressão externa por uma maior proteção ambiental no País, ver o presidente admitir o que é evidente é, de fato, um avanço.

Entretanto, a recepção ao discurso do brasileiro também ressaltou o fato de que, por mais importante que seja o discurso, ele deve ser precedido por ações concretas. Entre os americanos envolvidos na tentativa de Biden de retomar a liderança global dos Estado Unidos na questão ambiental, o Brasil precisa mostrar ações e metas condizentes com este novo discurso. A credibilidade precisa ser construída com fatos, e não apenas com falas.

E o governo Bolsonaro realmente ofereceu ao mundo um fato concreto no dia seguinte da Cúpula do Clima. Seguiu na direção contrária do que havia prometido ao mundo e aprovou corte de 24% no orçamento do meio ambiente para 2021.

A medida contrasta diretamente com a fala do presidente. Ela dá razão aos alertas feitos por políticos, ativistas e artistas nacionais e de outros países antes do encontro de líderes globais – de que não deveriam confiar no brasileiro.

Uma revelação tão evidente destas duas faces do Brasil: uma do discurso e outra da prática, parece indicar falta de seriedade do País nas suas relações com o resto do mundo. Por mais absurdas que fossem as falas anteriores, nas quais Bolsonaro negava o problema do desmatamento e das queimadas na floresta, eram, ao menos, realistas sobre a política adotada pelo governo. Com a mudança de retórica, criou-se uma nação de ficção para se relacionar com o mundo.

O governo parece ignorar os alertas dos interlocutores norte-americanos de que a comunidade internacional não funciona apenas em torno de discursos, bem como sobre a necessidade de práticas concretas e metas para a preservação. A notícia dos cortes orçamentários ganhou destaque na imprensa estrangeira, expondo a falsidade da retórica de Bolsonaro e a prática da política sem compromisso com o ambiente.

A política externa brasileira vem passando por processo de transformação e perda de reputação desde 2019. O País, que já foi uma liderança global em temas ambientais, teve pouco espaço na cúpula e viu mais de uma dezena de países discursar antes e com mais prestígio. Ainda assim, nas últimas semanas, mudanças no Itamaraty indicavam um possível ajuste positivo nos rumos da diplomacia nacional. Esse ajuste estético parece ter “maquiado” a participação brasileira na Cúpula do Clima, oferecendo um discurso com o tom equilibrado e positivo visto pelos outros países. Contudo, a notícia do orçamento salientou o fato de que se trata apenas de retórica, sem nada de concreto que indique uma mudança real de comportamento do Brasil.

Além de não caminhar de fato para uma política de maior proteção ambiental, a incongruência entre o discurso e a prática ameaça acabar de vez com qualquer credibilidade que ainda reste ao Brasil. Mudar só o discurso não vai conseguir evitar que o País se consolide como pária internacional – e pode até acelerar o processo de encolhimento do prestígio nacional.

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