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Não existe “cacique” partidário – encontremos outro termo!

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Partido não é tribo. Fosse e o sentido de solidariedade, responsabilidade e pertencimento vigoraria. Assim, por qual razão, insistimos em adaptar ao sabor de interpretações equivocadas alguns termos para determinadas situações políticas que pouco representam a verdade? Quero falar sobre o uso do termo “cacique partidário”.

Foi numa palestra na Fundação Konrad Adenauer do Brasil, faz alguns anos, que, por força de um hábito despreocupado, repetitivo e preconceituoso, afirmei numa análise política que os “caciques partidários” mandavam em seus filiados, lhes impondo lógica por vezes autoritária e corrupta. No fundo de um auditório composto por poucas mesas e algumas dezenas de parceiros de conselho da citada organização, um colega levantou a mão. Vindo da região Norte do País, pertencente a uma das diversas sociedades indígenas que temos, ele me advertiu mesclando indignação e elegância: “Não use o termo ‘cacique’, que sob tal concepção nem sequer para nós existe, para dar a entender que nos tratamos desse modo autoritário e corrupto a partir de nossas lideranças políticas. O que vocês chamam de ‘cacique partidário’ passa longe do que temos como exemplo de pessoas que nos lideram. Escolham outras palavras, tratem de rever esse conceito. Se o partido for horizontal e um pouco mais plural, chame seu líder de cacique, se for o que vocês estão relatando, mudem a palavra.”

Senti um pouco de vergonha, mas me coube de forma muito sincera agradecer. Não só a ele, mas também à oportunidade de uma fundação ter em seu conselho uma diversidade significativa de pessoas. Fosse a reunião mais homogênea, eu continuaria sem ter uma lição como esta. No convívio da diversidade é que aprendemos e nos fortalecemos no respeito aos demais que conosco estão. De forma ampla, esta foi uma das grandes lições da vida.

A partir de então, busquei corrigir, sempre que possível, quem usa tal palavra como sinônimo de um mandonismo vertical sobre determinada coletividade. O intuito aqui não é apenas contar esta história, mas entender o motivo pelo qual fazemos uso do termo e o que ele realmente significa. Cacique é a palavra genérica utilizada para definir o chefe de uma coletividade indígena. O portal Significados crava que o termo se origina na palavra cachique e “surgiu provavelmente no período das grandes navegações e descobrimentos. Essa era a maneira como os navegadores e colonizadores espanhóis e portugueses se referiam aos chefes das tribos encontradas durante essa época”.

Já o caciquismo está definido a partir de atitudes violentas ou arbitrárias de líderes políticos que transcendem aspectos de natureza legal, inclusive, para se sobrepor a determinada coletividade. O cacique seria a liderança política que atua sob condições culturais afeitas àquilo que costumamos atribuir ao mandonismo. O termo, no entanto, não é utilizado apenas nas Américas, mas também em Portugal. Resta assim entender o que nos inspira a utilizar a palavra.

É dos portugueses José Manuel Sobral e Pedro Ginestal Tavares de Almeida um artigo de 1982 publicado na revista Análise Social, intitulado “Caciquismo e poder político. Reflexões em torno das eleições de 1901”. Os autores nos trazem descrições de práticas e percepções sobre a figura do “cacique”, em Portugal, que merecem atenção.

O caciquismo, nesse caso, é em parte definido como prática comum de “referências aos comportamentos a ele associados — influência política, corrupção eleitoral, compadrio, favor, cunha— abundam e não conotam, aliás, um regime político em particular”. Isso, porque se identificam “com a vida política portuguesa ao longo de mais de um século”, sendo seu uso percebido a partir do final do século 19 para delinear práticas historicamente descritas, de forma mais detalhada, na literatura. Ademais, os autores indicam, em uma citação, que “o caciquismo não é um acessório do regímen. É o próprio regímen. Ou, pelo menos, está para o regímen como o coração está para o organismo em que bate”.

Nessa realidade, o cacique seria, de acordo com texto de Oliveira Martins citado pelos autores, sinônimo de “influente”, termo que designa personagem central da cultura política ibérica, entendido como aquele que “em tudo manda em determinada zona de terreno, freguesia, concelho ou distrito”. Aqui, inclusive, havia divisão em tipos ideais: os caciques proprietários de terra e os caciques burocratas, sendo que a divisão evoluiu para o que José Barbosa, igualmente citado, entendia por caciquismo administrativo, patronal, clerical e político – cada qual com sua força e raio de influência.

Em resumo, os caciques pertenciam às elites políticas regionais ou locais. Nesse sentido, o uso do termo no Brasil estaria parcialmente correto se estivéssemos a falar de “influentes” locais, que podem nos remeter à figura dos “coronéis”. Mas como e por que a palavra foi parar naquela realidade? Em tese, para além dessa “reimportação” do verbete, que viajou entre os mares e se distorceu na realidade política, usamos “caciques de partidos” como os dirigentes nacionais das legendas. “Cacique português”, da passagem do século 19 para o 20, é o influente político que atua entre a realidade local, na qual ele se impõe, e um Estado mais abstrato, por vezes distante, vivido em perspectiva nacional. Assim, ele está “implantado num determinado meio onde exerce poder, e este vem-lhe da junção entre o predomínio pessoal num dado conjunto social e a função de mediador que desempenha nas relações entre este e as elites nacionais e, através delas, o Estado”.

“Cacique na tribo”, de onde o termo parece emergir historicamente, é denominação artificial de colonizadores para chefe político que, em diversas realidades, distorce um princípio mais horizontal do que o senso comum preconiza. Por fim, popularmente na realidade político-partidária do Brasil, é definido como o símbolo de um todo-poderoso partidário. O que fazer?

Não é questão, aparentemente, de apagar o que escrevemos ou dissemos, até porque o termo foi criado no período das navegações, voltou para Portugal para determinar forma de mandonismo local e, hoje, ainda caracteriza análises do comportamento menos republicano de líderes partidários no Brasil. O “cacique” que usamos hoje na nossa política é uma distorção de realidades indígenas ou uma reedição do mandonismo português? O uso em Portugal é uma extensão equivocada da palavra vinda da época das colônias? Não importa. A partir de toda a complexidade desta discussão, que parece longe de estar plenamente contemplada acima, existe a necessidade de reconhecimento do outro, que se sente ofendido por tudo aquilo que dele se fala ou a partir dele se interpreta.

Em 2016, eu estava em Massachusetts quando alunos, que acompanhavam comigo um curso em Harvard, relataram que ouviram no parlamento local o clamor pela mudança da bandeira do Estado. A cabeça de um indígena e, sobre ela, uma mão segurando uma espada, davam a impressão de decapitação. As coisas não são o que dissemos, apenas, mas também o que as pessoas ouvem e sentem. E isso deve ser respeitado, a despeito de severas dificuldades de compreensão cotidiana. Ainda mais recente é a mudança no nome do time de futebol americano de Washington, que deixou de lado o nome “peles vermelhas” depois de perceber, a partir de diversos protestos, que o termo era pejorativo. Questionários antigos falavam em “vermelhos” quando desejavam falar dos indígenas, algo que corrigimos. É um avanço. Que venham outros tantos, no sentido de fazermos com que certas coisas impostas sejam esquecidas em nome de nossa capacidade de respeitar visões plurais.

P.S.: No dia 2 de junho o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto que mudava a denominação de “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas”. Ele alegou que “não há interesse público na alteração” e que na Constituição Federal o termo usado é “índios”, “não havendo fundamentos robustos para sua revisão”. Leis que falavam de “menores” hoje falam em crianças e adolescentes, leis que falavam em “portadores de necessidades especiais” hoje falam em pessoas com deficiência. A sociedade dinâmica, é bem diferente do que vivíamos em 1988, e “tradicionalmente” os povos indígenas são tratados com desprezo e pouca sensibilidade. Só mudamos quando escutamos o outro. Mas isso, no Planalto, é de uma complexidade imensa. Que o Congresso Nacional derrube mais um veto, algo bem incomum no atual governo…

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.

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