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A BBB é ‘big’, mas bela para quem?

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Em 3 de julho de 2025, em discurso no YouTube, o líder democrata Bernie Sanders afirmou: “Não se enganem. Acredito que os historiadores olharão para trás, na tarde de 3 de julho de 2025, e concluirão que a aprovação da Big Beautiful Bill de Donald Trump foi um dos maiores atos de roubo da história dos Estados Unidos e uma das piores peças de legislação aprovadas na história moderna do país”. 

A “Grande e Bela Lei” a que se refere Sanders é a nova lei de Trump de 900 páginas, aprovada pelo Congresso norte-americano em regime de urgência e no calar da noite, com uma diferença para a sua aprovação de apenas um voto na Câmara — e, ainda, com o voto de minerva do vice-presidente, J.D. Vance, no Senado. Mas o que a tal BBB promove? 

Os benefícios estão concentrados para os norte-americanos mais ricos. Na verdade, 60% dos cortes de impostos se destinarão aos 20% mais abastados. A lei adiciona US$ 5 trilhões à dívida nacional estadunidense. E as reduções de impostos previstas serão realizadas por meio de cortes em programas de bem-estar e assistência sociais. 

Em um momento em que 85 milhões de cidadãos do país não têm seguro de saúde (ou têm seguro insuficiente), essa lei reduz drasticamente o Medicaid (sistema social de saúde) e o Affordable Care Act (Lei de Cuidados Acessíveis), o que tira mais 17 milhões de pessoas do sistema. Isso gerará um grande impacto à velhice também, pois, nos Estados Unidos, dois terços das casas de repouso para idosos são sustentados pelo programa.

Os defensores da lei omitiram que o Medicaid é uma importante fonte de financiamento para hospitais em todo o território estadunidense. Com esses cortes previstos, as clínicas serão forçadas a reduzir os serviços oferecidos, cortar funcionários ou fechar completamente. 

O outro programa atacado pela lei é o Programa Suplementar de Assistência Nutricional (SNAP). Atualmente, é o maior programa do gênero no país, com mais de 41 milhões de beneficiários. A lei de Trump reduz os gastos federais com o SNAP em US$ 287 bilhões ao longo dos próximos dez anos. Uma estimativa revela que, agora, mais de 5 milhões de pessoas correm o risco de perder boa parte da sua assistência alimentar. 

Além disso, pela primeira vez, há a exigência de que os Estados-membros paguem uma parte dos benefícios do SNAP e cubram custos administrativos. De fato, o Congressional Budget Office (CBO) — agência que fornece informações para o Congresso norte-americano — estimou que, em um período de dez anos, isso transferiria cerca de US$ 121 bilhões de custo para os governos estaduais. Nessas condições, é provável que vários Estados reduzam a elegibilidade ao SNAP ou mesmo abandonem completamente o programa. Isto é, a lei institui novos problemas para os Estados-membros e instiga graves confusões federativas. 

Outro problema sério da nova lei é que esta se mostra um golpe duro nas questões climáticas. Trump está revertendo várias concessões fiscais para esse setor, acabando com os cortes de impostos sobre a energia renovável e transferindo o financiamento e os incentivos fiscais para energias tradicionais, como petróleo e gás. Agora, há estímulos para a produção de energia de combustíveis fósseis e mais perfurações petrolíferas.

A questão é que todos esses números ecoam, de forma alarmante, as análises de Karl Polanyi (1886–1964) em A grande transformação (Contraponto, 2021). O filósofo argumentava que o trabalho é uma “mercadoria fictícia”. Ao contrário de um produto fabricado para venda, o trabalho é a própria vida humana — a sua energia, o seu tempo e a sua capacidade. Quando sujeito às flutuações brutais do mercado autorregulado, como ocorreu durante a Revolução Industrial, o resultado é a devastação social. As perdas de saúde e segurança alimentar para milhões de estadunidenses ilustram essa dinâmica. Saúde e alimentação não são luxos, mas pré-condições para o trabalho e a vida. Privar as pessoas dessas pré-condições as transforma em “mercadorias” descartáveis.

Cortar programas como o SNAP nega as necessidades biológica e social básicas de reprodução da força laboral e da vida familiar. É um ataque direto à base material da existência, tratando a alimentação como privilégio de mercado. As políticas mencionadas aceleram o processo de colapso da reprodução social — método pelo qual os lares e comunidades se mantêm física, cultural e socialmente. Sem isso, famílias inteiras serão empurradas para a insegurança crônica, minando a capacidade de criar filhos, manter laços comunitários e participar da vida cívica.  

Ao mesmo tempo, enquanto milhões perdem o essencial, há a institucionalização da cisão social canalizando recursos para os mais ricos. Assim, criam-se duas realidades distintas: uma na qual a reprodução social é ampliada e assegurada pelos poderes econômico e político, e outra em que é sistematicamente sabotada. Isso fragmenta a sociedade, arruinando qualquer senso de destino comum.

Essa trajetória leva à desintegração social e, potencialmente, a respostas autoritárias. A grande transformação que aconteceu no século 19 parece estar sendo reencenada com consequências tão devastadoras quanto as relatadas naquela época. Mas será que Trump ou seus assessores não sabem dessas consequências devastadoras? Será que essa legislação não é propositalmente catastrófica? No próximo artigo, apresentarei a lógica estratégica da crise que será instaurada pela BBB de Trump. Aguardem!

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.